SÍNDROME DO INTESTINO
IRRITÁVEL
ENTREVISTA
Flavio Steinwurz é
médico gastroenterologista, presidente da Associação Brasileira de Colite
Ulcerativa e Doença de Crohn (ABCD), diretor do Departamento de
Gastroenterologia da Associação Paulista de Medicina, integra o corpo clínico
do Hospital Albert Einsttein
O intestino é
constituído por duas partes: o intestino delgado e o intestino grosso. O
delgado (formado pelo duodeno, jejuno e íleo) estende-se do piloro – válvula
que separa o estômago do duodeno – até a junção íleocecal, onde começa o
intestino grosso, que vai desembocar no reto.
Muita gente se queixa
de problemas intestinais. São cólicas intermitentes, gases que provocam
distensão do abdômen, crises alternadas de prisão de ventre e diarreia,
sensação de que o intestino não foi esvaziado completamente com a evacuação.
Esses sintomas são comuns a muitas doenças intestinais. Uma delas é a síndrome
do intestino irritável, um distúrbio funcional, sem causa anatômica nem lesões
que o justifiquem. Por isso, seu diagnóstico é de fundamental importância para
excluir a possibilidade de moléstias graves.
No passado, a síndrome
do intestino irritável era atribuída apenas a alterações emocionais. Hoje se
sabe que o intestino tem enervação própria e hormônios que regulam sua
capacidade de excretar.
NOMENCLATURA E
CARACTERIZAÇÃO
Drauzio – Irritável não
é um termo que se use em medicina. O que ele significa na expressão “intestino
irritável”?
Flavio Steinwurz – Os
sintomas da síndrome do intestino irritável eram atribuídos a alterações
emocionais do portador e caracterizavam um distúrbio chamado de colite nervosa.
Veja que a palavra colite era empregada erradamente nesse caso. O sufixo “ite” indica
inflamação.
Como a síndrome do intestino irritável é um evento funcional que,
ao contrário das doenças orgânicas, não apresenta lesões nem inflamação, não
poderia ser chamada de colite.
Então, passou a ser
usada a expressão síndrome do cólon irritável. Síndrome, porque não é uma
doença, mas um conjunto de sinais e sintomas que se manifestam
predominantemente no cólon que pareceria, por assim dizer, irritado, nervoso.
Mais tarde, porém, verificou-se que o problema estava relacionado com ondas
peristálticas anormais e que a falta de coordenação motora não acomete só o
cólon, mas outras partes do tubo digestivo. Diante disso, para sermos precisos,
a síndrome deveria ser chamada de esofagogastroenterocolopatia funcional, nome
complicado demais.
Na língua inglesa, essa
síndrome é conhecida como Irritable Bowel Syndrome. Bowel significa tripa. Ora,
chamá-la de “síndrome da tripa irritadiça” também não parecia uma escolha
adequada. Por isso, optou-se por síndrome do intestino irritável, nomenclatura
mais de acordo com a que existe mundialmente sobre o assunto.
Drauzio – A coordenação
motora do intestino é absolutamente necessária para fazer o bolo fecal
progredir nos intestinos. Ela depende não só de estruturas anatômicas
(músculos, mucosas, etc.), mas de mediadores químicos que vão agir nas fibras
musculares provocando contrações.
Esses mediadores são semelhantes aos
liberados pelo sistema nervoso central, a ponto de, em medicina, o intestino
ser considerado um segundo cérebro. Qual a relação entre as alterações
emocionais e a motilidade do intestino?
Flavio Steinwurz – No
passado, achava-se que o problema era puramente emocional. Hoje, sabemos que o
intestino tem um segundo cérebro representado por mediadores e um sistema
nervoso próprio.
Sabemos também que a região do hipotálamo no cérebro, entre
outras funções, é responsável pelo impulso das emoções e tem ligação direta com
o sistema nervoso autônomo simpático e parassimpático. Sabemos, ainda, que o
principal nervo do sistema parassimpático, o nervo vago, enerva todo o tubo
digestivo.
Ele estimula a secreção de ácido, de enzimas, de fatores digestivos
e coordena a movimentação do intestino. Além disso, há cerca de cinco anos,
descobriu-se que existem hormônios e receptores para esses hormônios
localizados no tubo digestivo, similares àqueles encontrados no sistema nervoso
central e que são chamados de encefalinas, por analogia a encéfalo (cérebro).
Portanto, o tubo digestivo possui enervação própria e hormônios que regulam sua
motilidade e capacidade de secretar. Tudo isso nos permite afirmar que existe
relação direta entre a emoção integrada no hipotálamo e a motilidade do
intestino.
SINTOMAS
Drauzio – O que
interfere na motilidade do intestino?
Flavio Steinwurz – O
movimento peristáltico caracteriza-se por um conjunto de contrações musculares
dos órgãos ocos e tem por finalidade juntar o bolo fecal e fazer uma varredura
no intestino, provocando o avanço do conteúdo ali existente. De forma
coordenada, ocorrem contrações e relaxamentos sucessivos da musculatura lisa
que empurram o bolo fecal para baixo para que seja expelido.
No intestino irritável,
essa coordenação está defeituosa e não promove o movimento propulsivo adequado.
O esforço que o intestino faz para eliminar o que está retido dentro dele
acarreta um estímulo grande em suas paredes e provoca, num primeiro momento,
prisão de ventre e, depois, evacuações de fezes fragmentadas, em pedaços,
muitas vezes amolecidas, de calibre pequeno pela contração excessiva, assim
como alternância das crises de obstipação e diarrea.
Drauzio – Que sintomas
provoca a descoordenação do movimento peristáltico?
Flavio Steinwurz – Os
principais sintomas são dor e desconforto causado pelo acúmulo excessivo de
gases. Muitas vezes, no fim do dia, o indivíduo é obrigado a abrir o cós da
calça, porque sente a barriga estufada. Além disso, pode ter tanto intestino
preso como intestino solto, ou ambos alternadamente, dependendo da irritação
que as alterações da motilidade intestinal tenham provocado.
Drauzio – Há alguma
relação entre esses sintomas e as refeições?
Flavio Steinwurz – A
refeição é um estimulante do movimento intestinal, de um movimento de massa
desencadeado pelo reflexo gastrocólico. Ou seja, quando o alimento chega ao
estômago, através de hormônios e estímulos nervosos, é enviado um comando que
estimula as contrações e provoca aumento na motilidade do intestino.
Como esse
reflexo é tanto maior, quanto mais longo for o período de jejum que antecedeu a
alimentação, normalmente, ocorre pela manhã, depois de uma noite inteira de
jejum.
Na síndrome do intestino
irritável, o reflexo gastrocólico e o movimento de massa estão exacerbados. Por
isso, as manhãs são difíceis, porque aumentam os reflexos e, consequentemente,
aumenta a necessidade de evacuar. Em cerca de 70%, 80% dos casos, os portadores
da síndrome têm diarreia e evacuam várias vezes depois do café da manhã.
DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Drauzio – Um dos
problemas da síndrome do intestino irritável é que os sintomas são comuns aos
de muitas doenças do intestino. Um deles é a alternância de obstipação e diarreia,
que aparece também nos casos de câncer de intestino.
Flatulência, dor,
alteração na consistência das fezes podem ser sinais de doenças inflamatórias
como a retocolite ulcerativa e a doença de Crohn. Quais os cuidados necessários
para não confundir os sintomas da síndrome com os de outras doenças mais
graves?
Flavio Steinwurz – É
muito importante diferenciar a síndrome do intestino irritável de uma doença
orgânica. Caso contrário, poderemos passar por cima de problemas sérios que
exigem tratamento específico.
O diagnóstico da
síndrome leva em conta os sintomas e é feito por exclusão. Se o indivíduo tem
menos de 50 anos, fez exames de atividade inflamatória, exames de sangue que
não revelaram perda de ferro e anemia, exame de fezes para detectar se o sangue
oculto é negativo, se
não existir histórico familiar de outras doenças
intestinais, pode-se tentar o tratamento com drogas para intestino irritável e
observar. Se não houver melhora, o paciente deve ser encaminhado para
colonoscopia.
No entanto, se ele
tiver mais de 50 anos, se o exame de sangue oculto nas fezes for positivo e
houver histórico familiar de outras doenças do intestino, a colonoscopia será
prescrita imediatamente para excluir a possibilidade de uma doença orgânica
grave. Como se vê, o diagnóstico de intestino irritável é feito ao excluirmos
patologias mais graves.
Drauzio – Quanto tempo
se pode esperar pela resposta ao tratamento com drogas para a a síndrome do
intestino irritável?
Flavio Steinwurz – O
tempo é curto. Não mais do que um mês. Se nesse tempo o indivíduo não responder
ao tratamento, será encaminhado para a colonoscopia.
Drauzio – Lembrando que
a colonoscopia é um exame feito com um tubo flexível e elástico que permite ver
por dentro todo o intestino grosso e uma parte do intestino delgado, se o
resultado for normal, você se tranquiliza?
Flavio Steinwurz – Na
verdade, não, porque ainda existe a possibilidade de haver alguma alteração na
parte do intestino delgado que o aparelho de colonoscopia não alcança.
Num
primeiro momento, porém, o exame dá certa tranquilidade e permite tentar o
tratamento para a síndrome do intestino irritável. Caso os sintomas persistam,
a investigação das causas prossegue.
Avalia-se o intestino delgado para
verificar se não existe algum problema na absorção dos alimentos ingeridos – o
paciente é intolerante à lactose, por exemplo – ou existe um problema
relacionado com o próprio intestino.
Para tanto, pede-se um exame de raios-X de
trânsito intestinal para examinar o intestino delgado inteiro e diagnosticar
dificuldades com as enzimas pancreáticas ou a doença celíaca provocada por
alergia ao glúten.
TRATAMENTO
Drauzio – Depois que se
chegou à conclusão de que o problema é mesmo funcional e ligado à motilidade do
intestino que não ocorre de forma adequada para a progressão do bolo fecal, o
que se faz?
Flavio Steinwurz –
Primeiro, tento tranquilizar o paciente, dizendo-lhe que a síndrome do
intestino irritável é a patologia intestinal mais prevalente no mundo, até
porque a tendência, hoje, é classificar a constipação crônica como síndrome do
intestino irritável..
Drauzio – Se incluirmos
na síndrome todas as pessoas que têm prisão de ventre, metade da população
teria a síndrome, pois praticamente todas as mulheres se queixam desse
problema.
Flavio Steinwurz –
Estima-se que 40% da população mundial tenham a síndrome, um número absurdo, de
fato. Mas, em geral, a pessoa fica mais tranquila quando sabe que não é
portadora de uma doença orgânica, que não existem lesões e não precisa ser
operada.
Drauzio – Qual é,
então, o objetivo do tratamento?
Flavio Steinwurz – O
objetivo do tratamento é controlar o movimento do intestino e recuperar sua
coordenação motora normal. Isso pode ser conseguido com orientação alimentar e
medicamentos.
Alimentos ricos em
fibras solúveis e insolúveis favorecem a formação adequada de um único bolo
fecal. Na grande maioria das vezes, porém, a pessoa precisa também de medicação
para controlar a motilidade fecal, quer seja pela ação de hormônios, quer seja
por ação direta na movimentação do intestino. Apenas alguns poucos pacientes
necessitam de remédios que rompam o vínculo entre alterações emocionais e
funcionamento dos intestinos.
Drauzio – Quais são as
fibras solúveis e quais são as insolúveis?
Flavio Steinwurz – Fibras
solúveis são as que formam e compactam o bolo fecal. Normalmente, são
encontradas em polpas de frutas e em alguns cereais. Já as insolúveis formam o
bolo fecal, mas não têm o poder de compactá-lo. Funcionam mais como laxante e
estão presentes nas cascas das frutas e de cereais e em todas as verduras.
De acordo com a
tendência a apresentar constipação ou diarreia, os portadores da síndrome do
intestino irritável serão orientados a ingerir mais fibras solúveis ou mais
fibras insolúveis.
Drauzio – Que alimentos
devem ser evitados?
Flavio Steinwurz – O
leite e seus derivados, por exemplo. Na verdade, 70% da população acima dos 60
anos já desenvolveram certo nível de intolerância à lactose, ou seja, ao açúcar
do leite, que fermenta e intensifica a produção de gases. Isso favorece a
distensão do abdômen a tal ponto que o indivíduo é obrigado a abrir o cós das
calças no fim do dia.
Drauzio – Como resolver
esse problema se leite e derivados são importantes fontes de cálcio
especialmente para a população de mais idade?
Flavio Steinwurz –
Existem leites especiais, com baixo teor de lactose e o mesmo teor de cálcio
dos leites convencionais.
Drauzio – Existem
outros alimentos que também devem ser evitados?
Flavio Steinwurz –
Devem ser evitados alimentos que irritem os intestinos, como condimentos
picantes e produtos com excesso de conservantes. Como o sal grosso tem efeito
osmótico e aumenta muito o fluxo de água para dentro dos intestinos,
favorecendo a irritação intestinal, está na lista do que deve ser evitado.
Da
mesma forma, desaconselha-se a ingestão excessiva de açúcar, principalmente de
doces muito concentrados, como brigadeiro, quindim, leite condensado.
Drauzio – Quem tem a
síndrome do intestino irritável consegue levar vida normal, sem tomar remédio
nem passar por fases de grande desconforto?
Flavio Steinwurz – É
muito difícil. Em geral, os portadores da síndrome precisam de remédio. Isso
não quer dizer que o uso de medicamentos deva ser crônico e contínuo, como
acontece com outras doenças do intestino. Eles podem ser prescritos nas fases
de maior desconforto, por não mais do que um ou dois meses.
É evidente que o
indivíduo com propensão para manifestar a síndrome, depois de alguns anos sem
manifestações clínicas, por fatores emocionais ou algum distúrbio na motilidade
intestinal, pode voltar a apresentar os sintomas e ser obrigado a retomar o
tratamento.
Drauzio Varella
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