O universo simbólico budista do momento da morte revela o mecanismo do karma e do dharma na hora da morte.
A CIÊNCIA TIBETANA DA
MORTE
por Lygia Cabus
O Bardo Thödol é uma
obra que fala da concepção budista-tibetana sobre o post mortem. Foi escrito no
século VII, compilado por mestres budistas. Seu conteúdo, porém, muito mais
antigo, reúne crenças tibetanas sobre o que acontece depois da morte do corpo
físico humano.
Também chamado de O
Livro dos Mortos Tibetano, a expressão "Bardo Thödol" é mais
apropriadamente traduzida como "A Libertação Pelo Entendimento na Vida
após a Morte". "Bardo" é uma palavra composta: BAR significa
"Entre" ― DO, significa "Dois".
Lama Samdup
(1868-1923), que traduziu o texto para o inglês, definiu "Bardo" como
"estado incerto" (intermediário), referindo-se à situação
intermediária da Mônada ou espírito humano entre a vida biológica, orgânica,
que chegou ao fim e o período que transcorre até o próximo renascimento. Os
tibetanos e budistas são, portanto, reencarnacionistas, ou seja, acreditam na
reencarnação.
A
"Libertação" mencionada no Bardo Thödol relaciona-se ao fim do ciclo
de reencarnações produzidas pelo carma, pelos sentimentos de culpa, pelo apego
à vida. É a libertação da "roda samsárica" [ou sangsárica] que obriga
o espírito a renascer em uma das seis categorias de mundos inferiores, a saber:
1. mundo dos Devas
(anjos na visão cristã);
2. mundo dos Asuras
(semideuses e heróis, apaixonados, sujeitos a paixões);
3. mundo dos Humanos;
4. mundo dos Brutos,
seres inanimados e/ou imobilizados;
5. mundo dos Pretas ou
dos infelizes;
6. mundo Rakshasas,
dominados pelo ódio.
O Bardo Thödol é um
livro de instruções que objetiva fornecer as informações necessárias para que o
espírito obtenha a Libertação alcançando o "estado de Buda", de
Iluminado, habitando "Terras Búdicas", livre da reencarnação
inevitável porém ainda capaz de voltar a viver em um dos cinco mundos de seres
animados (a exceção é o mundo dos Brutos), por vontade própria, se desejar
auxiliar os encarnados em seu processo de evolução.
De certa forma, o Bardo
Thödol é a ciência de que permite ao espírito transcender a lei do carma pelo
entendimento do fenômeno da vida em sua TOTALIDADE CONTÍNUA.
Um entendimento
que permite superar a forte cadeia que prende o SER humano [em todas as suas
manifestações] a uma existência de sofrimento: a cadeia formada pelo binômio
DESEJO-CULPA.
OS SINTOMAS DA MORTE
Diz a sabedoria popular
que "a única certeza da vida é a morte". Com efeito, todo ser humano,
às vezes na mais tenra idade, fica sabendo sabendo que, inevitavelmente, em um
momento qualquer do futuro "a hora chega", a morte virá. Tal como
existem várias formas de viver, também existem várias formas de morrer.
A morte
"natural", consequência de doenças que provocam a falência funcional
do corpo físico e as mortes "provocadas", por assassinato, suicídio
ou acidentes.
Em qualquer desses
casos morrer pode ser um acontecimento súbito (rápido, de um instante para
outro) ou lento. A morte lenta envolve a experiência da agonia, processo
gradual durante o qual o princípio vital (Jiva) vai, aos poucos, abandonando o
organismo.
O conhecimento do Bardo
Thödol é aplicável a qualquer caso porém, no caso de morte lenta, cuja agonia
pode durar horas ou dias, o livro fornece instruções que permitem ao moribundo
e/ou aos circundantes reconhecer os sintomas de que se aproxima o momento do
último suspiro.
São estas, em geral, as
três primeiras evidências da chegada morte:
1ª) Sensação física de
descompressão ("a terra se desfazendo em água");
2ª) Sensação de frio,
com a impressão de que o corpo está imerso em água, a qual se transforma
gradualmente num calor febril ("a água se desfazendo em ar");
3ª) Sensação de
explosão dos átomos do corpo ("o fogo se desfazendo em ar").
Cada sintoma
corresponde a determinada alteração do corpo, exterior e visível: ausência de
controle dos músculos do rosto; perda de audição; perda da visão; respiração
espasmódica, antes da perda final da consciência. [SAMDUP, 2003 - p 65]
I. A CLARA LUZ
PRIMORDIAL
Confrontação &
Libertação ― Chikhai Bardo, 1º Estágio
A primeira confrontação
[com o post mortem] é a percepção da realidade metafísica ― "o além".
O espírito perde o contato orgânico com o mundo terreno:
já não ouve nem vê com
os órgãos dos sentidos posto que estes não funcionam mais. Entretanto, será
capaz de ver, ouvir, sentir frio ou calor através dos
"olhos/ouvidos/tecidos" do corpo sutil (corpo do espírito) já em
processo de separação ou completamente desligado do corpo físico.
Antes mesmo da
consumação da morte a percepção mediada pelos órgãos sensoriais entra em
colapso. Embora ainda apresente sinais vitais e respire, o moribundo não mais
abriga o espírito em íntima comunhão; está debilmente ligado àquele corpo por
uma conexão tênue, em vias de se romper definitivamente.
Esse estado de SER e
ESTAR é o começo da continuidade da existência na condição de BARDO ou ESTADO
DE BARDO.
Estudos científicos contemporâneos
de "Experiências de Quase Morte" registram relatos de pessoas dadas
como clinicamente mortas mas que voltam à vida e lembram do que aconteceu no
período transcorrido entre a "morte" e a "ressurreição".
Na maior parte desses
relatos, depoentes declaram que atravessaram um túnel escuro em cuja
extremidade podiam ver uma claridade, uma luz branca e radiosa. Muitos tiveram
medo dessa luz; outros, sentiram-se atraídos por ela.
No Bardo Thödol, essa
luz branca é "A Clara Luz Primordial" que, antes de ser uma visão, é
uma autopercepção dos espíritos elevados quando abandonam o corpo de matéria
densa.
Esses espíritos
evoluídos são muito raros; não se assustam com a sensação de autodissolução que
sobrevém no momento da morte. É o primeiro estágio de transição, da vida
corporal, finita, para a vida "eterna" contínua, do espírito.
Este
estágio, denominado Chikhai Bardo ou Estado Incerto do Momento da Morte, é a
primeira oportunidade de se libertar da "roda de samsara" ― do ciclo
de reencarnações:
Depois de um período de
inconsciência em virtude do choque da perda da consciência biológica, [o
espírito] retoma a consciência mental pura e seu Princípio Consciente, ou
cognoscente, simplesmente dá-se conta de que houve morte biológica.
Completado
esse processo, [o espírito] retorna ao seu Estado Primordial, chamado Clara Luz
Primordial. Somente se libertam da roda das vidas e reintegram-se à emanação
direta da divindade, na Clara Luz, as pessoas mais elevadas, que atingiram os
pontos mais altos do saber espiritual.
[Estas, alcançam o estado-situação de
Darma-Caia, livres de outros nascimentos e renascimentos sem passar por nenhum
outro estágio intermediário - p 63]
Esse estado [Estado
Primordial, de Ser-Luz ou Ser-Energia-Pura] é altamente instável para a mente
humana, mesmo a mais evoluída, pois a Clara Luz já começa a ser ofuscada pela
solicitação do carma, representada pelo ego [personalidade terrena] que não foi
totalmente apagado [deixado para trás]...
[A Clara Luz é ofuscada]... à menor
partícula de egoísmo, à menor sensação de separatividade do ego em relação ao
Divino, ao menor apoio que se dê a essa idéia. (SAMDUP, 2003 - p 44/45)
A libertação pela
auto-identificação com a Clara Luz é reconhecer a si mesmo como um SER-LUZ ―
alcançando Terras Búdicas, Terras Puras, onde habitam os Iluminados. Significa
"alcançar o estado primordial do incriado", o estado de Buda, além do
sofrimento, transcendendo ou superando condicionamentos advindos da ignorância,
da sensualidade, da percepção dos fenômenos transitórios (Maia, ilusões), da
forma, do espaço, do tempo. Este é um ESTADO DE SER isento de todo carma.
A Clara Luz primordial
ocorre [aparece], normalmente, antes do "último suspiro", antes do
conjunto espírito e princípio vital ter se desligado completamente do corpo
físico. O primeiro estágio do Chikhai Bardo dura cerca de 20 minutos.
II. CHIKHAI BARDO ― 2º
ESTÁGIO
A Clara Luz Secundária
& O Senhor da Compaixão
O reconhecimento da
Clara Luz Primordial conduz à Libertação imediata, ocorrência rara entre a
maioria dos terráqueos contemporâneos. O mais comum é a experiência dos
estágios subsequentes: "...o defunto verá brilhar a Clara Luz Secundária
...surge então um estado de espírito lúcido" [p 67].
No post mortem as
mudanças de estado [de consciência] se sucedem acompanhados da percepção de
sons e imagens que chegam a ser aterradores; o turbilhão de visões dura
"até que o carma nesta condição se esgote" ou o espírito consiga se
manter tranquilo diante do vê e ouve. O segundo estágio do Chikhai Bardo pode
durar muitos dias terrenos.
Neste segundo estágio
do Chikhai Bardo, tão logo o princípio consciente abandona o corpo "ele se
pergunta: ― "Estarei morto ou não?" ―
Enquanto isso, entre "os
vivos" o rito funerário tibetano continua [os católicos cristãos tem seus
próprios ritos o padre que encomenda a alma a Deus, as missas, de sétimo dia,
de mês, etc.], auxiliando o morto na transição:
... o lama ou leitor [oficiante,
sacerdote, irmão de fé etc.] faz uma prece para a Divindade Tutelar do morto.
Essa Divindade é "deus", santo, anjo, orixá etc., dependendo da
formação religiosa e cultural do defunto.
Se o oficiante ou mesmo
o morto nada sabem de divindades tutelares [Buda, Nossa Senhora, Jesus,
Krishna, Rama, Alá, Jeová, ancestrais etc..] o pensamento deve se concentrar na
idéia de um "Senhor da Compaixão".
É curioso que os
tibetanos usem esta expressão em um texto tão anterior a Jesus e Buda porque a
idéia de um Senhor da Compaixão se ajusta muito bem às figuras e doutrinas de
ambos. O oficiante orienta o espírito, agora já desencarnado, com a seguinte
idéia:
Medita, ó nobre filho
sobre tua Divindade Protetora [DIZER O NOME DA DIVINDADE]. Não disperse teus
pensamentos. Concentra teu espírito sobre teu Deus tutelar. Medita sobre Ele
como se fosse o reflexo da lua sobre a água, visível, mas em si mesmo
inexistente. Medita sobre ele como se tivesse um corpo físico.
"Medita sobre o
Grande Senhor da Compaixão". Durante este segundo estágio o CORPO
permanece no estado de "corpo de ilusão brilhante" [p 68].
Se a
meditação sobre a divindade tutelar funcionar, poderá libertar o mais miserável
dos homens porque qualquer carma é "dissipado" ― cancelado, anulado ―
pela consciência, identificação e completa entrega, não-resistência do
self [do si mesmo] diante da Clara Luz
Secundária.
III. CHÖNID BARDO: A
EXPERIÊNCIA DA REALIDADE
Se a Clara Luz
Secundária não foi reconhecida, se o Espírito, com medo, rejeitou essa Luz ou
fugiu dessa Luz, começa o terceiro estágio do Bardo. Neste estágio, a
"realidade experimentada" é, na verdade,
uma seqüência de ilusões
cármicas, tormentos para o morto que lhes dá atenção, produzindo desequilíbrio,
impedindo o SER de alcançar a perfeita iluminação [ou estado de Buda].
A essa altura, o
defunto percebe que parte de sua refeição é descartada [contexto tibetano],
suas vestimentas são despojadas de seu corpo... Consegue ouvir o pranto e a
lamentação de seus afetos e familiares, podendo, sobretudo, vê-los e escutar o
chamado deles, mas acaba se retirando, descontente, pois os vivos [não
respondem; o bardo não consegue se comunicar com eles]...
Nessa hora, sons,
luzes e raios se manifestam, levando o morto ao receio, medo e terror e
causando-lhe fadiga. [Entre os vivos, o oficiante continua seu trabalho de
auxiliar o espírito recém desencarnado explicando]:
Ó nobre filho, ouve
atentamente sem distrair-se. Existem seis estados de Bardo, que são: O estado
natural do Bardo durante a concepção; o Bardo do estado onírico; o Bardo do
equilíbrio extático, na profunda meditação; o Bardo do momento da morte;
o
Bardo da experiência da Realidade; o Bardo do processo inverso da existência
sangsárica... Ó nobre filho, o que se denomina como "morte" é
chegado... Não te apegues mais a esta vida por fraqueza ou sentimentalismo...
Não sejas fraco, não te apegues... Lembra-te da preciosa Trindade ... [p 71/72]
Aqui, mais uma vez,
aparece a semelhança de doutrina religiosa entre o cristianismo católico e o
budismo, com essa referência à natureza simultaneamente una e trina da
"divindade", do criador original de todas as coisas.
Durante o Chönid
Bardo os sons e as luzes percebidos bem como as figuras de Budas e seus
séqüitos que o livro descreve são ilusões nascidas das preocupações e temores
do Espírito. Estas ilusões são chamadas FORMAS-PENSAMENTO.
Ao longo da vida todas
as pessoas produzem tais formas pensamento. São idéias fixas, pensamentos
recorrentes (que se repetem muito) sobre medos e anseios [e também sobre afetos
e coisas boas-agradáveis, formas-pensamento positivas].
Dizem os ocultistas que
os homens vivem cercados destas entidades que habitam o plano mental,
imperceptíveis durante a vigília normal, às vezes, perceptíveis no estado de
sono (estado onírico do Bardo).
No Chönid Bardo, o
espírito, que agora existe somente no plano mental de realidade (SER MENTAL) vê
perfeitamente estas entidades sem perceber que elas nascem de seus próprios
pensamentos, apegos, emoções.
[O homem encarnado comum também pode ser
assombrado por suas próprias formas-pensamento sem jamais perceber que ele
mesmo cria estes fantasmas ― meditemos...] Sente medo, entra em pânico porque
as formas refletem o terror, o amor angustiado e/ou possessivo, a autopiedade,
o ódio, a culpa, etc..
O morto, preocupado com
as "coisas dos vivos" faz com que os pensamentos se materializem
personificando as emoções. O próprio
corpo do Bardo, na verdade, é um corpo-pensamento.
Se o medo e/ou toda e
qualquer forma de inquietação prevalecem começa, então, a jornada pelo sangsara
que dura cerca de 14 dias terrenos. São 14 de chances de reconhecer a Clara Luz
e escapar do ciclo cármico.
Os tibetanos
representam essas formas-pensamento em figuras de divindades Pacíficas e
divindades Irritadas que, conforme a cultura tibetana (e também hindu,
anteriores ao budismo de Sakyamuni) são Budas acompanhados de seus séqüitos.
Os
Budas representam diferentes pensamentos, que se traduzem em DESAPEGO, e sua
simbologia inclui também a identificação com determinadas cores e elementos da
natureza (água, fogo, terra, ar, éter).
Enquanto as cores e
elementos são valores de significação universal, os Budas são expressões da
cultura oriental hindu-tibetana, o que significa que as visões mudam em função
da cultura humana vivenciada pelo Bardo [Espírito].
Por isso, um ocidental
verá Jesus, um muçulmano, anjos de Alá, um xintoísta japonês verá seus
ancestrais, um outro alguém verá seu pai e mãe, seu santo padroeiro, seu orixá
e assim por diante, entre as divindades pacíficas.
As divindades irritadas
tibetanas são as mesmas pacíficas revestidas de aspectos amedrontadores, como
crânios humanos cheios de sangue, seres portando adagas, legiões que gritam
"mata, mata"... No Ocidente, os pensamentos negativos, os medos, as
culpas, surgem como demônios, monstros, abismos etc..; e isso, é o inferno
[lato sensu]!
Tais experiências, ora
sedutoras, ora aterradoras, que acontecem durante o Chönid Bardo, são todas
marcadas por luzes de cores diferentes. Conhecer bem o significado deste código
luminoso e cromático é fundamental para que se tenha uma chance de alcançar a
libertação ou, ao menos, um renascimento em circunstâncias mais favoráveis.
Nas alegorias do Bardo
Thödol, a personagem central das visões são Budas cercados de seres fantásticos
que deixam entrever muito bem, para um tibetano, o modo como o post mortem é
determinado pelas idéias e estado de espírito que uma pessoa cultiva durante a
vida terrena. Na tabela abaixo estão relacionados estes Budas e suas
respectivas correlações.
Durante todo o Bardo o
Espírito é CONFRONTADO com os Budas Luminosos. O Livro insiste muito nesse
termo: CONFRONTAÇÃO. Significa que O SER ver-se-á diante de situações de
escolha. Deverá escolher entre modos de EXISTÊNCIA que são indicados por luzes
de diferentes cores.
São sete opções mas
somente um destes modos de SER é isento ― livre ― de carma e, por conseguinte,
livre de SOFRIMENTO. É o estado de Buda, Iluminado. Somente alcançam a condição
de Buda os espíritos que conseguem SER completamente livres de qualquer APEGO.
Note-se que o DESAPEGO é o objetivo maior de todo Iniciado budista, está no
âmago dos ensinamentos do budismo e é essência da doutrina cristã
["Tomam-lhe o manto? Entrega também a túnica... vende todos os teus bens e
segue-me, etc."]
AS CONFRONTAÇÕES
Nos sete primeiros dias
do Chönid Bardo o Espírito é confrontado com entidades chamadas Pacíficas. Sete
luzes muito radiantes, fortes, aparecem, uma a cada "dia" do Bardo ―
radiações da Sabedoria; elas "brilham para o Bardo". São as luzes da
"terras búdicas".
Cada uma das sete luzes
fortes é acompanhada por uma semelhante, porém, mais suave. [Eis a "emboscada"]
As luzes radiantes produzem um forte impacto na percepção gerando sentimentos
de desconforto e medo. As luzes suaves são reconfortantes.
O Espírito do humano
sentirá o desejo de se entregar às luzes suaves, que são as luzes dos SEIS
LOKAS (mundos) INFERIORES, ou seja, mundos onde o modo de SER implica
sofrimento.
As luzes radiantes
conduzem ao estado de Buda, de Libertação do carma. As luzes fracas são PORTAS
para os Lokas inferiores e atraem todos aqueles que não conseguem se DESAPEGAR,
psiquicamente, do carma.
Embora os mundos
inferiores sejam muito diferentes entre si, mesmo o mais elevado destes mundos,
o Mundo dos Devas, DEVAKHAN é, ainda, uma prisão.
Somente nas terras Búdicas o
espírito alcança a liberdade de existir em pleno e verdadeiro desapego. O
oficiante, o irmão de fé, dirá ao Espírito:
Saibas, nobre filho
[nome do Espírito na Terra - Fulano] que, na medida em que brilham as radiações
da Sabedoria, também brilham as luzes da impura ilusão dos seis Lokas. Que são
elas? Deves perguntar.
Elas são uma suave luz BRANCA dos DEVAS, uma suave luz
VERDE dos ASURAS, uma suave luz AMARELA dos SERES HUMANOS, uma suave luz AZUL
dos BRUTOS, uma suave luz AVERMELHADA dos PRETAS, uma suave luz
CINZA-ESFUMAÇADA dos INFERNO DOS RAKSASHAS...
Deves permanecer no REPOUSO da
NÃO FORMAÇÃO DE PENSAMENTO... Não te sintas assustado nem te permitas atrair
por nenhuma delas. Caso te deixes assustar pelas radiações da Sabedoria ou se
te permitires atrair pelos brilhos impuros dos seis Lokas, deverás tomar um
corpo num dos seis Lokas e sofrer as dores dos Sangasaras. [p 85]
Segundo o Bardo Thödol
existem seis tipos de seres: cinco animados (vivos) e dois brutos (mudos e
imobilizados), os vegetais e os minerais. Todos são considerados formas de ser
inferiores porque estão sujeitos ao sofrimento. Todo o ensinamento do livro tem
como objetivo preparar os seres humanos para o momento decisivo em que deverão
escolher entre dois caminhos: a libertação como Buda ou a escravidão, a prisão,
seja como:
― 1. DEVA
― 2. ASURA
― 3. HUMANO
― 4. PRETA
― 5. RAKSASHA
― 6. BRUTO
As advertências são
insistentes:
1° DIA ― Não te
permitas seduzir pela luz suave e branca dos Devas. Não te apegues, não sejas
fraco. Se a ela te apegares, andarás sem rumo pelas moradas dos Devas e serás
lançado no turbilhão dos seis lokas... Não fites essa luz. Olha somente à luz
branca-radiante com fé profunda, concentrando ardentemente seu pensamento em
Vairochana [ou Jesus, ou Khirsna, etc..] ... [p 75]
2° DIA ― Vinda do
inferno, uma luz cinzenta e esfumaçada surgirá... por força da cólera, ficarás
surpreso e amedrontado pela luz [radiante do Buda] e quererás afugentar-te; a
suave luz cinzenta do inferno [dos rakshasas] irá atrair-te... Não te sintas enlevado
pela luz do inferno, cinzenta e esfumaçada. Este caminho foi aberto pelo mau
carma da cólera... Se segues essa atração luminosa, cairás nos mundos
infernais, onde terás de suportar uma grande miséria, sem que haja um tempo
certo para tu saíres de lá. [p 76]
3º DIA ― Não te
permitas seduzir pela suave luz amarela do mundo humano, a qual representa o
caminho aberto pelo acúmulo de tuas inclinações e de teu agressivo egoísmo. Se
fores atraído, renascerás no mundo humano, tendo de sofrer o nascimento, a senilidade,
a doença e a morte. [p 77]
4º DIA ― Não te deixes
seduzir... pela luz suave e avermelhada vinda de Preta-Loka... Livra-te do
apego e da fraqueza. Neste momento, pela forço intensa gerada pelo apego às
coisas do mundo, a luz avermelhada BRILHANTE irá terrificá-lo e deverás
desviar-se dela, pois será forte a tração da suave luminosidade avermelhada do
Preta-Loka...
Esta luz é formada pela soma de teus sentimentos de apego ao
Sangsara que se manifesta em ti. Permanecendo apegado, cairás num mundo de
espíritos infelizes e sofrerás uma fome e uma sede intoleráveis. [p 79]
5º DIA ― Não se permita atrair pela luz suave
verde-escuro do Asura-Loka. Este é o carma adquirido pelo ciúme intenso... Se
te permitires atrair por ela, irás afundar no Asura-Loka, onde terás de
suportar a intolerável miséria das querelas e dos estados de guerra. [p 81]
6° DIA ― ...Na medida em que brilham as radiações da
Sabedoria, também brilham as luzes impuras dos seis Lokas ... [No sexto dia,
brilham juntas]. [p 85]
7º DIA ― Uma delicada luz azul, vinda do mundo dos
brutos aparecerá... Não te deixes atrair pelo suave brilho azul do mundo bruto;
sejas forte. Se fores atraído cairás no mundo bruto, dominado pela estupidez, e
sofrerás as misérias sem limites da escravidão, da mudez e da imbecilidade.
Passará muito tempo nessa condição... [p 90]
DIVINDADES IRRITADAS
Depois das visões das
divindades pacíficas, se o Espírito não reconheceu as luzes, os seres, os sons
e outras percepções como projeções de seus próprios pensamentos e emoções, isso
significa que a ignorância e o medo estão dominando o Bardo que, aterrorizado e
muito confuso vai experimentar a "aurora das divindades irritadas".
As Divindade Irritadas são as mesmas Pacíficas revestidas de atributos tão horrendos
e macabros quanto a enormidade do medo sentido pelo Espírito. As visões desta
fase podem durar por mais sete dias terrenos. Para a cultura tibetana, neste
período podem surgir até 58 divindades que são chamadas "bebedoras de
sangue".
Imediatamente após terem
cessado as aparições das Divindades Pacíficas [que eram sete emboscadas]...
surgirão outras 58 divindades rodeadas de chamas, irritadas e bebedoras de
sangue. Na realidade são Divindades Pacíficas com novo aspecto... Trata-se do
Bardo das Divindades Irritadas, cujo reconhecimento é mais difícil por serem
influenciadas por sentimentos de medo, de terror e de receio... Fugindo por
medo, terror... as pessoas ordinárias caem pelos precipícios, nos mundos
infelizes e sofrem. [p 91]
A experiência da
realidade com as Divindades Irritadas é um filme de terror. Para os tibetanos
esse é o inferno possível no post mortem [situação infernal ou Inferno podem
ocorrer em vida terrena também]. Nesta fase o espírito está sujeito a
sofrimentos indescritíveis [proporcionais a seus medos, culpas e agonias].
No
entanto, por mais reais que os piores acontecimentos possam parecer, são todos
ilusórios; não haverá nenhum dano real à estrutura física [ou melhor dizendo,
metafísica] do "corpo radiante".
A "aurora"
das divindades irritadas assemelha-se a um longo pesadelo durante o qual
pode-se ter a nítida impressão de morte e aniquilamento [possivelmente trata-se
de uma "segunda morte", a morte dos apegos às coisas da vida
passada]. Isso ocorre nos dois últimos "dias" dos 14 dias de duração
média do Chönid Bardo.
O Livro Tibetano dos
Mortos adverte, com insistência, que mesmo nas circunstâncias mais sangrentas,
o Espírito deve lembrar-se que os horrores vivenciados, apresentados à sua
percepção, são ilusões geradas por ele mesmo, pelo seu SER VERDADEIRO, que é
feito de energia mental.
No 14º dia do Chönid Bardo, não tendo se tranqüilizado
e não reconhecendo suas próprias formas pensamento, o Espírito verá O Senhor da
Morte Darma-Raja, com seus inumeráveis corpos.
Em todas as fases do
Chönid Bardo existe a possibilidade de Libertação. Para isso basta que o
Espírito RECONHEÇA as visões como suas próprias projeções mentais e com isso
possa dissipar o pânico estabelecendo um estado de calma impassível.
Essa
indiferença diante do agradável e do desagradável, igualmente, é a mais
importante conquista, e "lição número 1", tanto dos Iniciados iogues
e budistas quanto dos ocultistas ocidentais.
O auto-controle e a
tranqüilidade são a chave da Libertação; estes atributos somente podem ser
alcançados se a pessoa tem consciência do caráter ilusório das percepções, dos
sons, das visões:
"Lembrar-se disso neste momento é obter o estado de
Buda" [p 100]. Lembrar-se dos ensinamentos do Bardo, então, será o
suficiente para que o Espírito escape ao condicionamento do carma. É
necessário, portanto, o mínimo de instrução religiosa para "morrer
bem".
O poder da fé é
enfatizado no texto e a interferência de um Ser supremo e realmente divino pode
ser o bastante para libertar o Espírito. Semelhante à doutrina cristã, a
doutrina do Bardo afirma a onipotência de uma "divindade tutelar",
chamada de "preciosa Trindade",
Senhor da Compaixão e, ainda, "o
Compadecido", remetendo o leitor ocidental, mais uma vez, à figura de Jesus
Cristo, como pessoa da Santíssima Trindade que é o Deus Criador, posto que é Um
e Três na coexistência mística, na ontologia complexa do SER Pai, Filho e
Espírito Santo.
Ai de mim! Eis-me
errando no Bardo [neste estado intermediário],
vem me salvar.
Sustenta-me por tua graça, ó Tutelar Precioso
[Chamando teu guru pelo
nome, reza assim:]
...Que eu possa ser
transformado no som das Seis Sílabas...
[Om-ma-ni-Pad-me-Hum]
Neste momento... Rogo
proteção ao Compadecido [p 102]
Om-ma-ni-Pad-me-Hum ― é
chamado "mantra essência" ou mantra de Chenrazi, o Compadecido,
divindade protetora do Tibete que, ali, tem o nome de Chenrazi [para o
ocidental, é Jesus ou a Virgem Maria ou simplesmente Deus, assim como para os
krisnaista é Krishna e para muitos budistas é o Buda Amitaba ou Sakiamuni.
Segundo o Todol, o simples entoar mantra de Chenrazi, seja encarnado ou
desencarnado, extingue o ciclo de renascimentos e permite alcançar o Nirvana
[estado de Buda]. Cada sílaba fecha uma porta que conduziria o Espírito a
mundos inferiores.
OM: fecha a porta dos
renascimentos entre os deuses, Devas
MA: impede nascer entre
Asuras [semi-deuses e "heróis]
NI: fecha a porta do
renascimento no mundo Humano
PAD (pê): bloqueia a
entrada no mundo das criaturas sub-humanas [animais, vegetais, minerais]
ME: afasta o mundo dos
Infelizes,chamados Pretas
HUM (hung): protege de
um nascimento no Inferno, entre os Rakshasas.
Quaisquer que sejam as
praticas religiosas ou, ainda, o ateísmo dotado por um Ser, as ilusões
perturbadoras sempre aparecem na hora da morte. Por isso, o Thödol é tido como
indispensável: "É de particular importância o treinamento com este Bardo
[doutrina, o que deve ser feito inclusive durante a vida." [p 103]
Os tibetanos não têm
medo de se preparar para o momento da morte. Não é um assunto deixado para um
"depois-nunca", como acontece no ocidente onde falar da morte é um
comportamento inconveniente.
O Espírito que estuda os fenômenos da agonia e do
post mortem está mais apto a enfrentar as experiências tão inquietantes que
podem acontecer nos últimos momentos de existência terrena de um ser humano.
IV. SIDPA BARDO
O Chönid Bardo, além de
aterrorizante, é uma experiência muito exaustiva. O Espírito que não reconheceu
as visões de pesadelo como ilusões da mente, passa, necessariamente por uma
seqüência de acontecimentos que minam suas forças e sua consciência.
Entretanto, nada perdeu; ao contrário, o sofrimento consome todos os resquícios
de matéria mental "impura", terrena, esgotando a capacidade de sentir
culpas, medo e/ou desejos.
Cansado, o Espírito
sofre um desfalecimento: "desfaleces no medo". Quando recobra a
consciência, o Ser Cognoscente (Ser conhecedor) percebe a si mesmo como um
"corpo radioso".
É o começo da jornada no Sidpa Bardo, situação que
ainda possibilita algumas chances de Libertação do Carma. Se estas
oportunidades também forem perdidas, as portas do Sangsara se abrem.
O Espírito deverá
buscar a melhor opção de reencarnação em um dos seis Lokas ou Mundos
Inferiores.
Neste ponto do post mortem o conhecimento do Thödol é fundamental
para se saiba quando e como "fechar as portas" dos mundos mais
infelizes, garantindo uma nova vida em uma das duas situações mais positivas: o
mundo dos Devas e o Mundo Humano.
O texto do Livro dos Mortos esclarece em
minúcias as situações metafísicas que o espírito vai experimentar no Sidpa
Bardo:
No momento em que
experimentavas as radiações... no Chönid Bardo... desfalecestes no medo por um
período de aproximadamente três dias e meio após tua morte [vê-se aqui que o
Tempo em Bardo, estado intermediário, não tem correspondência com dias
terrenos]... No instante em que retornas desse desfalecimento, o Cognoscente
er
gue-se em ti, em sua condição primordial, e um corpo radioso, assemelhando-se
a teu corpo precedente [da última vida terrena], projeta-se... É conhecido como
corpo do desejo...
Não sigas as visões que
te aparecem neste instante... Permita que seu [SER] repouse sem distrações na
não-ação e no desprendimento... Agindo assim conseguirás a Libertação sem teres
de passar novamente pelas portas matrizes...
Se não reconheceres a ti mesmo,
então, quaisquer que sejam sua Divindade Tutelar e seu Guru, concentra sobre
eles [teu pensar]... Não te deixes distrair porque este momento é de grande
importância...
Este teu corpo atual...
não é um corpo de matéria grosseira...
Tens o poder de passar através das
massas rochosas... Essa condição deve servir para ti como uma indicação de que
erras pelo Sidpa Bardo. Lembra-te dos ensinamentos de teu Guru e ora ao Senhor
da Compaixão.
[Atualmente]... possuis
o poder de ação milagrosa que não é fruto do Samadi, é algo que vem
naturalmente de ti, um poder de natureza cármica... Podes chegar
instantaneamente ao lugar que quiseres... Não deves desejar estes poderes, são
poderes diversos de ilusão e metamorfoses... Nunca os desejes! [p 109-111]
O Espírito terá a
clarividência do mundo que deixou para trás; verá lugares conhecidos,
familiares, tudo em um estado de consciência semelhante ao sonho.
A realidade
percebida no Sidpa Bardo será mais ou menos feliz ou infeliz dependendo de
como, a essa altura, o indivíduo reage ao saber que está morto para a
"vida" da PERSONALIDADE passada. Os inconformados, angustiados,
tristes, tomados de culpa, saudade ou medo, estes passarão enormes sofrimentos.
O desapego das
"coisas do mundo", tão enfatizado na doutrina e prática do budismo
bem como na teologia cristã, é o único caminho caminho para um post-mortem
feliz.
O Espírito, ao constatar sua "morte para o mundo",
simplesmente aceita o fato e, compreendendo a verdadeira dimensão da própria
existência [CONTÍNUA] não lamenta nada, não pensa em perdas, não fica preso a
nenhum tipo de recordação.
O Bardo Thödol descreve a situação do "defunto
inconformado": ele é a alma penada, o espírito errante, o fantasma dos
cemitérios.
[Em corpo de desejo o
Espírito]... verá os lugares que lhe eram conhecidos na terra bem como seus
familiares, como em sonho. Fala-lhes, mas eles não te respondem, Ao vê-los
chorar... pensas: "Morri, que farei?" ...
Sentirás profunda dor...
Contudo esse sofrimento de nada te adiantará. Reza para teu Guru divino. Ora à
Divindade Tutelar, o Compadecido. Não te farás bem sentir apego por teus parentes e amigos.
Assim, não te apegues. Reza ao Senhor da Compaixão e não sentirás dor, terror
ou horror...
Sempre haverá uma luz
cinzenta de crepúsculo... Permanecerás neste chamado Estado Intermediário por
uma, duas, três, quatro... semanas, até o quadragésimo nono dia...
Pessoas de
péssimo carma produzem carmicamente rakshasas vorazes de carne, portando armas
diversas, aos gritos de "Bate! Mata!" ... São aparições ilusórias. A
chuva, a noite, neve, rajadas de vento... virão.
Terrificado... desejarás
fugir... sem prestar atenção para onde vai. O caminho será barrado por três
precipícios... o branco, o negro e o vermelho. Não são precipícios verdadeiros.
Trata-se, na verdade, da cólera, cobiça e ignorância...
Descansarás um pouco...
nas cabeceiras das pontes, nos templos, perto das estupas... Pensarás: "Ai
de mim, o que fazer, estou morto?... Não podendo repousar [mais] ... és forçado
a seguir adiante... Como alimentação, aquela que te foi aplicada poderá ser
tomada...
[Os moradores do Bardo vivem das essências etéreas invisíveis
extraídas de alimento que lhes oferecido no plano humano ou extraindo energia
dos componentes da natureza que os sustentam]... Tais são os errares do
corpo-mental no Sidpa Bardo...
Oprimido por uma grande dor, terá o pensamento:
"O quê eu não daria para ter um corpo!" E pensando assim errarás...
Repele este desejo de ter um novo corpo. Vencendo este confronto, obterá a
libertação...
V. O JULGAMENTO
O julgamento é um novo
confronto. Desta vez, de natureza mais objetiva, é o momento de evocar os
méritos e deméritos do Espírito, de suas ações na vida terrena. Uma figura de
juiz, o Senhor da Morte, vai julgar a personalidade passada. Na alegoria, um
Gênio Bom e um Gênio Mau ― que acompanham o Espírito em sua existência ―
apresentam as virtudes e os vícios, os acertos e erros do Espírito. Não há meio
de enganar o Senhor da Morte porque ele "vê" a Verdade no
"Espelho da Carma" [p 115]. "A mentira de nada servirá". Os
"carrascos-fúrias" estão prontos para aplicar o castigo ― ou seja, o
Espírito chegou ao ponto de somente se purificar se sofrer castigos pelo que
ele mesmo julga serem suas "culpas".
Um dos carrascos-fúrias
do Senhor da Morte amarrará uma corda em volta de teu pescoço e te arrastará.
Cortará tua cabeça, arrancará teu coração, extrairá teus intestinos, devorará
teu cérebro, beberá teu sangue, comerá tua carne, roerá teus ossos, mas serás
incapaz de morrer.
[As torturas são da própria consciência... o superego de
Freud]; o espelho do carma é a memória... Reviverá mesmo estando teu corpo
retalhado em pedaços... Não te deves amedrontar... Não mente e não teme o Senhor
da Morte. Lembra que agora tem um corpo mental, incapaz de morrer, mesmo
decapitado, mesmo decepado. Teu corpo é da natureza do vazio... Os senhores da
Morte são tua própria alucinação. [p 115]
Novamente, o Espírito
assediado pelas horrendas visões deste julgamento, poderá se libertar através
da impassibilidade. Uma serenidade que pode obtida pelo reconhecimento de todas
as coisas como ilusão.
Aqueles que, durante a
vida praticaram a meditação e aprenderam a instaurar a completa quietude da
mente, pela não-formação de pensamentos, estes poderão superar quaisquer
alucinações. Os que nunca meditaram também podem alcançar a paz interior se
concentrarem seu pensamento no Compadecido [Cristo, Khrisna, Buda].
VI. OS SEIS LOKAS
O Espírito que não
conseguiu a Libertação nas etapas anteriores passará, então, pelas experiências
que vão determinar a situação de seu próximo renascimento.
Para evitar renascer
em mundos inferiores será necessária a instrução na doutrina do Thödol e a máxima
atenção para com as percepções seguintes. O Espírito vai se defrontar com
diferentes passagens, cada uma conduzindo a um Loka diferente. Apenas dois
destes Lokas são recomendados pelo Livro dos Mortos.
A partir desta fase, o
Espírito, continua tendo visões do que se passa "entre os vivos", o
quê acentua a tendência ao apego e, dependendo daquilo que percebe, fomentam-se
sentimentos negativos, como a cólera e a autopiedade, o amor doloroso e a
saudade em um processo que resultará em "renascimento no inferno"
[mundo dos Rakshasas].
Se o Espírito não
consegue superar seu apego aos bens materiais, se lamenta ver suas posses nas
mãos de outros,"se ainda sente cólera contra seus sucessores" [p
117], este Espírito, dominado pela AVAREZA, perderá a chance de nascer em um
"plano superior mais feliz e nascerá no inferno dos Rakshasas ou no mundo
dos Pretas.
O Thödol, ainda uma
vez, recomenda o desapego, a renúncia em relação às posses e a tolerância em
relação aos viventes que, porventura
estejam se comportando de forma inadequada ou desrespeitosa.
"Jamais crie pensamentos ímpios", o ideal é se concentrar em um
sentimento de afeição tendo o pensamento repleto de humildade e fé. No estado
intermediário, no Bardo, todo pensamento é forte a ponto de se tornar tangível.
"Diante disso, não
pense em coisas ruins... lembre-se de qualquer gesto de devoção... Manifesta
uma pura afeição humilde fé... Ora ao Compadecido"... [p 119].
Esta é a
última chance de evitar uma reencarnação. Falhando em todas as tentativas e despertar
em si o Entendimento, o indivíduo verá, então, as luzes dos seis Lokas e o
derradeiro recurso para obter a Libertação é conseguir fechar a porta da
matriz" ou seja, a porta de cada um dos mundos inferiores onde pode
acontecer o Renascimento.
A matriz é o
corpo-pai-mãe onde o Espírito será gestado e de onde nascerá. Quando aparece um
dessas portas, o Ser pode sentir atração ou rejeição. O ideal é não sentir
NADA.
Os dois sentimentos
devem ser rapidamente dissipados porque podem produzir a transferência imediata
para um dos Lokas inferiores dos mais indesejados; mundos dos brutos [animal,
vegetal ou mineral]; mundo dos Rakshasas;
dos Pretas; o mundo dos Asuras. As
melhores opções para quem vai reencarnar são o mundo dos Homens e o mundo dos
Devas. É necessária a máxima atenção, concentração e serenidade nos próximos
momentos porque serão decisivos para uma vida mais afortunada que a anterior.
VII. Renascimento
Perdidas todas as
chances de se tornar um Buda, um Iluminado, "...se a porta das matrizes
não foi fechada, está na hora de tomar um novo corpo. Aparecem, então, os
sinais e características do local de renascimento". O livro descreve os
mundos inferiores.
O reconhecimento da
Clara Luz Primordial conduz à Libertação imediata, ocorrência rara entre a
maioria dos terráqueos contemporâneos. O mais comum é a experiência dos
estágios subseqüentes: "...o defunto verá brilhar a Clara Luz Secundária
...surge então um estado de espírito lúcido" [p 67].
No post mortem as
mudanças de estado [de consciência] se sucedem acompanhados da percepção de
sons e imagens que chegam a ser aterradores;
o turbilhão de visões dura
"...até que o carma nesta condição se esgote" ou o espírito consiga
se manter tranqüilo diante do vê e ouve. O segundo estágio do Chikhai Bardo
pode durar muitos dias terrenos.
VIII. Nascimento
Supranormal e Nascimento no Germe
O Thödol relaciona
quatro espécies de nascimento: pelo ovo, pela matriz, supranormal e pelo calor
e umidade. O nascimento supranormal é a transferência direta do princípio
consciente de um loka [mundo] para outro. Deste modo o Espírito evoluído poderá
nascer entre Budas ou Devas.
O Espírito inferior,
entre Asuras. Pelo calor e umidade é o nascimento no mundo vegetal. O
nascimento pelo ovo e pela matriz são semelhantes e também chamados de
"nascimento pelo germe" [p 124]. É pelo germe que o nascimento
acontece no mundo Humano ou entre Pretas, ou entre Rakshasas.
O nascimento pelo germe
começa com a entrada do Espírito pela via etérea [em corpo sutil, radiante] no
preciso momento em o espermatozóide e o óvulo se unem:
"o
Cognoscente" [Espírito] prova um período de alegria... vindo a desfalecer,
em seguida, em estado de inconsciência"... Será encaixado na forma oval da
circunstância embrionária... Do mesmo modo pode-se descer ao Inferno ou ao
mundo dos espíritos infelizes [Pretas] [p 124].
Conclusões
A morte é um assunto
desagradável. No Ocidente, tornou-se quase proibido falar nisso. É uma
"conversa mórbida". Entretanto, todos vão morrer; a conversa mórbida
é um fato universal e inquestionável: o corpo humano é perecível. Resta saber
se algo, em nós, é imperecível. O Livro dos Mortos Tibetano afirma o
conhecimento de que que sim! Existe no ser humano uma porção que não morre: o
Espírito, que é o Ego, percepção que se traduz em "Eu Sou".
O Bardo Thödol, Livro
do Estado Transitório entre Vida e Morte, é uma doutrina, um manual [no sentido
de "livro"] e um ritual. Doutrina da ontologia do Humano [do SER
Humano], manual para orientar as transições entre a vida material-Espiritual e
a vida puramente Espiritual, ou seja, vida e morte e ritual facilitador desta
transição entre o nascer e o morrer.
A instrução dos
sacerdotes e dos fiéis budistas tibetanos em geral, inclui o estudo do Bardo
Thödol, como informação necessária, indispensável para que a continuidade da
existência, no post mortem, possa transcorrer como experiência feliz tanto
quanto possível.
Considerando a
limitação da vida terrena comparada à "eternidade" da existência no
Universo, não é uma extravagância tibetana cuidar dessa existência não terrena
com tanto zelo. O Ser existe mais tempo na condição metafísica, de Espírito
[incondicionado... meditemos...], do quê na condição física de
pessoa-personalidade humana-terrena.
A experiência de nascer
e viver na Terra, ser-estar em um corpo físico, pode obscurecer a tal ponto a
auto-consciência do verdadeiro EU que, ao findar de uma vida, a partir do
momento da morte, um Espírito pode entrar em profunda confusão mental e ao
invés de desfrutar da condição de espírito livre, sofre, apegado, preso aos
costumes e lembranças de um SER no espaço-tempo [uma personalidade] que não
existe mais.
O Bardo Thödol é o
texto "religioso" mais amplo e objetivo, no sentido de científico,
que trata da morte e de sua relação com a vida em detalhes preciosos. A
instrução do Thödol chama a atenção para aspectos importantes da condição
humana que acabam por ser completamente descuidados no dia-a-dia do homem
contemporâneo.
A preparação para o
momento da morte enfatiza a importância dos pensamentos ao longo da vida. As
"visões", as ilusões que atormentam o espírito em Bardo são muito
semelhantes aos tormentos do mundo.
Figuras monstruosas, cenas aterrorizantes
são as personificações metafísicas da realidade orgânica e psíquica dos piores
sentimentos humanos. O espírito em Bardo é o ser em sua natureza primária, que
é MENTAL; e a mente é como um lago que o Bardo deve manter em impassível
repouso.
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A Chave Para a Teosofia
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Estudo do Livro dos
Mortos Tibetano, o Bardo Thödol
edição em português de
Lama Kazi Dawa Samdup
Trad. Márcio Pugliese.
São Paulo: Madras, 2003
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