A inveja desvendada
Pesquisa revela que esse sentimento é processado na
mesma região cerebral que a dor física. Saiba como controlá-lo
Claudia Jordão e Carina Rabelo Revista Isto é.
Certa vez, um homem, extremamente invejoso de seu
vizinho, recebeu a visita de uma fada, que lhe ofereceu a chance de realizar um
desejo. "Você pode pedir o que quiser, desde que seu vizinho receba o
mesmo e em dobro", sentenciou. O invejoso respondeu, então, que queria que
ela lhe arrancasse um olho. Moral da história: o prazer de ver o outro se
prejudicar prevaleceu sobre qualquer vontade.
É por meio dessa fábula que a
psicanalista austríaca Melanie Klein (1882-1960) definiu na obra "Inveja e
Gratidão", um dos principais estudos já feitos sobre o tema, o
comportamento de quem vive intensamente esse sentimento.
Ao mesmo tempo que o ciúme é querer manter o que se
tem e a cobiça é desejar aquilo que não lhe pertence, a inveja é não querer que
o outro tenha. O mais renegado dos sete pecados capitais é uma emoção inerente
à condição humana, por mais difícil que seja confessá-la. Afinal, todo mundo,
em algum momento da vida, já sentiu vontade de ser como alguém.
Há até um lugar
no cérebro reservado para a inveja. Pela primeira vez, uma pesquisa científica
mostra onde ela e o shadenfreude - palavra alemã que dá nome ao sentimento de
prazer que o invejoso experimenta ao presenciar o infortúnio do invejado - são
processados na mente humana.
De autoria do neurocientista japonês Hidehiko
Takahashi, do Instituto Nacional de Ciência Radiológica, em Tóquio, o estudo
"Quando a sua Conquista É a minha Dor e a sua Dor É a minha Conquista:
Correlações Neurais da Inveja e do Shadenfreude foi publicado recentemente pela
prestigiada revista cientifica americana Science. Por meio de ressonância
magnética realizada em 19 voluntários (dez homens e nove mulheres), na faixa
etária dos 20 anos, foi possível identificar onde os sentimentos são
processados no cérebro. Ao sentir inveja, a região do córtex singulado anterior
é ativada.
O interessante é notar que é nesse mesmo local que a
dor física se processa. "A inveja
é uma emoção dolorosa", afirma Takahashi. O shadenfreude, por sua
vez, se estabelece no estriado ventral, exatamente onde se processa a sensação
de prazer. "O invejoso fica realizado com a desgraça do invejado",
diz o pesquisador. Durante a pesquisa, Takahashi induziu os voluntários a
imaginarem um cenário que envolvia outros três personagens, do mesmo sexo,
faixa etária e profissão que eles.
Dois deles seriam, hipoteticamente, mais
capazes e inteligentes.
Dessa comparação nasce a inveja, especialmente quando
as pessoas são muito parecidas. Ou seja, é mais comum uma mulher se incomodar
com outra, da mesma faixa etária e profissão, do que com alguém com
características totalmente diferentes. "Trata-se de um sentimento
caracterizado pela sensação de inferioridade", explica o neurocientista
Takahashi. "Quando há essa sensação, é porque houve comparação e a pessoa
perdeu."
"A minha inveja se
repetia em tantos palcos quanto houvesse situações de comparação"
Roberto Birindelli, 46 anos, ator
Roberto Birindelli, 46 anos, ator
O ator Roberto Birindelli perdeu muitas batalhas, mas
parece ter vencido a guerra. Ao longo de seus 46 anos, a inveja sempre o
perseguiu. Na escola, nutria o sentimento pelos colegas de classe que
conquistavam as garotas com facilidade. Na vida adulta, sofria quando um colega
ator conseguia um teste para o melhor papel de uma produção.
O sentimento o corroía tanto que ele chegou a invejar
o modo como uma determinada jaqueta de couro caía bem em um conhecido. "O
que me deixava mal era saber que a roupa não ficaria tão boa em mim",
confessa Birindelli. "A minha inveja se repetia em tantos palcos quanto
houvesse situações de comparação." Insatisfeito em se projetar o tempo
todo nos outros, o ator foi em busca de auto-conhecimento.
Descobriu o eneagrama (técnica para estudo do
comportamento humano), fez terapia e mergulhou na meditação. "Percebi que
o problema era comigo", reconhece. "Sou inseguro em relação à maneira
como a sociedade me vê."
Amparado, aprendeu a lidar com a questão.
"Hoje em dia, sempre que vou sentir inveja de alguém, me pergunto: ser
como ele é melhor do que ser quem sou?", explica Birindelli, que está no
ar na novela "Poder Paralelo", da Record. Além da insegurança, a baixa autoestima, o
sentimento de incapacidade e a sensação de injustiça são características comuns
aos invejosos.
"Pessoas bem resolvidas e esclarecidas tendem a ter
menos inveja", diz o psiquiatra José Thomé, da Associação Brasileira de
Psiquiatria.
Mas por que há pessoas muito invejosas e outras que
passam a vida quase sem sentir essa emoção? A psicóloga Sueli Damergian,
professora da Universidade de São Paulo (USP), acredita que o segredo está em
não ultrapassar a linha da afeição. "A inveja é sempre fruto da
admiração", diz.
"Se ela ficar restrita a isso, pode funcionar como
impulso para o desenvolvimento." O problema é quando essa barreira é
rompida. "Se o impulso destrutivo for muito forte, o invejoso passa a
viver a vida do outro e isso pode ser danoso tanto para ele quanto para o
invejado."
EU QUERO Isabela e Pedro
manifestam a inveja por meio da cobiça
Em casos patológicos, que, segundo especialistas, são
mais comuns do que se imagina, quem sofre do mal é capaz de caluniar,
perseguir, e, em casos mais extremos, desejar a morte do invejado.
Há, também,
os que somatizam. Nessas situações, podem apresentar quadro depressivo,
autodestrutivo, agressividade e tendências suicidas. O psiquiatra Thomé
acredita que, salvo os casos patológicos, as pessoas têm livre-arbítrio para viver ou eliminar a inveja. "É um
sentimento muito primitivo, que deve ser trabalhado."
Entre a inveja destrutiva e a construtiva, a artista
plástica Roberta Martinho, 34 anos, ficou com a segunda. Garota curiosa, ela
teve consciência do sentimento ainda na pré-adolescência. Queria ser como o
Visconde de Sabugosa, personagem de Monteiro Lobato, em "O Sítio do
Pica-Pau Amarelo" - é recorrente a inveja de personagens fictícios ou
pessoas distantes do convívio, como as celebridades.
Seu segundo contato com a
emoção, dessa vez mais realista, foi por meio da professora de história.
"Invejava a cultura, a erudição e a inteligência dos dois", diz
Roberta. Numa versão light do sentimento, ela nem chegou a desejar o infortúnio
de seus invejados. "Queria ser como eles, mas não me sentia inferiorizada
nem injustiçada", diz.
A maneira que encontrou para lidar com a questão foi
mergulhar nos livros. "Ler muito, estudar, pesquisar", diz. Quando a
pessoa consegue fazer com que o sentimento, em tese negativo, impulsione ações
positivas, ela o transforma no que os especialistas chamam de inveja criativa.
"Inveja, ciúme e raiva são tão importantes quanto a visão, a sexualidade e
a alimentação", defende o psiquiatra Carlos Byington. "Todos eles
trazem informações importantes para formar e transformar a própria identidade."
Hoje, Roberta é frequentadora assídua de biblioteca e museu. E diz não sentir
mais inveja de nada, nem de ninguém. "Descobri que as pessoas são únicas e
que não devemos seguir padrões alheios."
Comum em toda a sorte de relações humanas, a inveja
está presente até mesmo dentro de casa. As irmãs Júlia e Lídia Loyola, 25 e 23
anos, respectivamente, e suas meias-irmãs Fernanda e Gabriela Fernandes, 17 e
13, moram juntas e compartilham da incômoda emoção. Filhas da mesma mãe e de
pais diferentes, estão sempre se comparando e lamentando aquilo que não são.
As mais velhas invejam a vida cheia de oportunidades
das mais novas. "Aos 15 anos, quando precisava de dinheiro,
trabalhava", diz Júlia. "A Fê não precisa disso." Fernanda
reconhece. "Não fico tripudiando, mas reconheço que me sinto recompensada
por ter vantagens em relação às minhas irmãs mais velhas, apesar de elas
estudarem tanto", diz. "Ao mesmo tempo, queria ser como elas: tirar
boas notas e não ficar de castigo."
"Invejava a
cultura, a erudição e a inteligência dos dois"
Roberta Martinho, 34 anos, sobre a ex-professora de
história e o personagem Visconde de Sabugosa, de Monteiro Lobato O ambiente de trabalho,
por sua vez, também é terreno fértil para os invejosos. Uma
pesquisa das universidades de Warwick e Oxford, na Inglaterra, mostra que nem
sempre se inveja a maneira de ser do rival, mas suas posses.
No experimento, os
entrevistados poderiam ganhar ou "queimar" o dinheiro do concorrente,
sob o custo de perder parte de sua verba - 62% dos participantes escolheram se
voltar contra o outro.
Segundo a psicóloga Glaura Maria Verdiani, autora da
tese de mestrado "Um Estudo sobre a Inveja no Ambiente
Organizacional", pelo Centro Universitário de Araraquara (SP), é provável
que esse sentimento esteja impregnado em 100% das relações profissionais.
"Em uma equipe de 30 pessoas, é possível que
todos invejem alguém, em algum nível", revela. A emoção pode ter origem em
qualquer um e partir para diferentes direções. Acontece entre pessoas do mesmo
cargo, funcionários de funções inferiores e superiores. "Há chefes
invejosos de seus subordinados, que são mais jovens, mais dispostos e, muitas
vezes, mais talentosos", diz Sueli
"O ex-marido da
minha colega me disse que ela tinha ódio mortal de mim e queria me
destruir"
Claudia Neves, designer, 28 anos
Aos 28 anos, a designer Claudia Neves foi vítima da
inveja em seu local de trabalho. Até seis meses atrás, ela era a única
funcionária entre vários homens do departamento em que trabalhava, numa agência
de publicidade em São Paulo.
Sua vida profissional virou de pernas para o ar
com a chegada de outra garota, da mesma idade, que passou a dar expediente numa
função com remuneração menor. No início, as duas se davam bem - ao menos
aparentemente. Até que a nova colega passou a evitá-la e agir de maneira estranha.
EM FAMÍLIA Filhas de pais
diferentes, as irmãs Júlia, Fernanda e Gabriela vivem se comparando;
"Ela não fazia o tipo feminina e, de repente,
começou a me pedir dicas de maquiagem", conta Claudia. Além disso, mais
gordinha, passou a se preocupar com a quantidade de calorias que ingeria.
"Essa neurose começou depois que os meninos compararam o corpo dela com o
meu", diz. Com o tempo, o melhor amigo de Claudia se afastou. E seu
supervisor passou a implicar com seu trabalho.
A designer desconfia que foi vítima de calúnias.
"Certa vez, meu chefe foi grosseiro comigo", conta. "Nessa hora,
pude ver no rosto dela que estava rindo por dentro." Triste com a
situação, Claudia pediu para ser demitida.
"O ex-marido dela me disse que
ela tinha ódio mortal de mim e queria me destruir", conta. Apesar da
atitude drástica que teve de tomar, ela não acredita que a colega tenha saído
vitoriosa. "Ela conseguiu me eliminar, mas estou muito feliz fora de
lá", afirma.
Em novembro passado, nos Estados Unidos, o ex-âncora
de telejornal Larry Mendte, 51 anos, além de demitido, foi condenado a pagar
uma multa de US$ 5 mil (R$ 10,1 mil) e a prestar 250 horas de serviços
comunitários por violar o e-mail de sua colega de bancada, Alycia Lane, 36
anos.
Por dois anos, Mendte enviou mensagens se fazendo passar por ela para
veículos de imprensa e colegas de trabalho. Durante o caso, admitiu ter inveja
por causa do salário anual de US$ 780 mil (R$ 1,6 milhão) de Alycia. "O
meu papel na emissora estava sendo reduzido quando ela me falou que era a nova
estrela", disse, à época.
Assim como os demais sentimentos, a inveja vem de
berço. Segundo Melanie Klein, até mesmo os bebês nutrem esse sentimento. Eles
invejam o seio materno, capaz de alimentá-los e confortá-los. A emoção, no entanto, começa a se tornar mais
visível na primeira infância e se manifesta na forma de cobiça. Pedro,
5 anos, e Isabela, 4, são primos e estudam juntos.
"Eles disputam tudo: a
atenção da família, dos professores, dos colegas", diz a educadora
Caroline de Oliveira, 32 anos, mãe de Pedro. "Isabela é mais de cobiçar os
brinquedos do primo, e ele, por sua vez, disputa a atenção das pessoas quando
ela se destaca." Para lidar com a atenção, a mãe explica para o filho que
não é possível ter tudo o tempo todo. "Tento prepará- lo para lidar com
essa sensação, que estará sempre presente."
A psicóloga Sueli, da USP, assina em baixo. "É
importante eliminar os sentimentos de inferioridade e baixa autoestima e
mostrar o outro lado", explica. "Se a pessoa não é boa em algo,
certamente será em outra coisa.
" Afinal de contas, a melhor maneira de
domar o sentimento da inveja é, assim como fez o ator Birindelli, identificá-lo
e aprender a lidar com ele. Graças a seu esforço, ele hoje circula satisfeito
com a jaqueta de couro que tanto invejou no outro e, finalmente, comprou.
Colaborou Rodrigo Cardoso
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