Gatos , miau!
Muitos convivem conosco há 5 000 anos. Mesmo assim, sabemos
pouco sobre eles: o miado e o ronrom, por exemplo, continuam sendo grandes
mistérios. Um novo livro joga luz sobre os bichanos.
por Jerônimo Teixeira / Paulo Pelá
Você está curtindo um momento de relax depois de um dia de
trabalho particularmente estafante. Acomoda-se no sofá para ler a Super, e –
veja só que coincidência – seu gato aproveita para usá-lo como almofada,
enrodilhando-se preguiçosamente sobre seu colo. Não demora muito, o bichano
começa a produzir um ruído baixo e regular, acompanhado de uma certa vibração,
como se acionasse um motorzinho secreto.
Está ronronando. Bom,
não é mesmo? Um daqueles prazeres exclusivos que só os elurófilos (aficionados
por gatos) conhecem. O que você talvez não saiba é que aí no seu colo está um
mistério científico.
Ninguém sabe qual a função exata do ronrom. Ao contrário do
que imagina a maioria das pessoas, inclusive aquelas que têm experiência com
gatos, esse simpático ruído nem sempre é uma expressão de prazer. Gatos que se
encontram em situações de estresse ou que estão sofrendo uma dor forte também
ronronam.
“Quando estão com
dor, eles parecem usar esse ruído relaxante como uma espécie de mantra”, diz o
veterinário João Telhado Pereira, da Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro, especialista em comportamento animal.
De toda forma, na
situação em que você foi colocado no início da matéria – uma situação
hipotética, claro, mas nem por isso menos confortável –, dá para supor que seu
gato está tranqüilo e satisfeito, sem dor ou estresse. Agora, largue a revista por
um momento e tente determinar de onde vem o barulho.
Você vai ter alternadamente a impressão de que o ronrom vem
do nariz, ou da garganta, ou do peito do gato. Pois é outro mistério: ninguém
sabe como os gatos ronronam. Os cientistas só têm conjecturas: o ruído seria
produzido pela passagem de ar nos brônquios, ou por certos vasos do coração.
Gatos são mesmo fascinantes. Não é por nada que eles
acumularam tantas lendas e equívocos ao seu redor. É o caso, por exemplo, do
dito popular segundo o qual os gatos têm sete vidas. Felinos dos Estados Unidos
e da Inglaterra são ainda mais sortudos: em inglês, dizem que eles têm nove
vidas.
Parece ser uma crença bem antiga – já aparece em um diálogo
de Romeu e Julieta, peça de Shakespeare escrita no final do século XVI. Menos
auspiciosa é a idéia, infelizmente ainda muito generalizada, de que o gato não
é amigo do dono, mas da casa. Deve ter sido invenção desse pessoal que gosta só
de cachorro.
A oposição entre cães
e gatos, no entanto, é criação humana. Eles não são inimigos naturais e podem
conviver muito bem sob o mesmo teto. (Aliás, o autor desta matéria esclarece
que gosta igualmente de ambas as espécies e jamais escreveria sobre uma em
detrimento da outra.)
Gatos e cachorros, é verdade, relacionam-se com o dono de
modos diferentes. Os cães são animais gregários. Seus equivalentes selvagens,
os lobos, vivem e caçam em grupo. Em situação doméstica, o cão tende a ver o
dono como uma espécie de chefe da matilha.
Os gatos, ao
contrário, são individualistas. Os felinos, em sua maioria, caçam sozinhos – a
exceção célebre é o leão. Isso conduz a formas diferentes de socialização com
os humanos. “Nós somos visitantes no espaço deles. Eu moro na casa dos meus
gatos”, afirma Luiz Paulo Faccioli, juiz internacional de concursos de gato
promovidos pela TICA (sigla em inglês para Associação Internacional de Gatos).
Isso não significa que eles devam mandar na casa. É o que
ensina o treinador Bash Dibra, em CatSpeak (ainda inédito no Brasil).
O título pode ser
traduzido livremente como “A língua dos gatos”, o que resume bem o espírito do
livro, espécie de manual de auto-ajuda para donos de gato.
Dibra, que acumulou
vasta experiência com lulus e bichanos – sua clientela inclui os animais de
estimação de celebridades como Jennifer Lopez e Kim Basinger –, revela
inclusive algumas técnicas básicas para ensinar truques ao seu animal. “É mais
fácil ensinar um cachorro”, diz o autor.
Mas isso não quer dizer, como muitos pensam, que os gatos
não sejam capazes nem mesmo de atender quando chamados pelo nome. É preciso
apenas conhecer a abordagem correta. “Com o cachorro, você manda que ele faça
alguma coisa. Com o gato, você pede”, afirma Dibra.
CatSpeak traz um capítulo dedicado à comunicação felina, com
uma espécie de dicionário de sons e posturas corporais.
Alguns dos “verbetes” são de conhecimento comum. Se um gato
arreganha seus dentes, eriça o pêlo e emite um ruído baixo e ameaçador, não é
preciso ser especialista em felídeos para saber que ele não está de bom humor.
Mas e se o gato de repente salta para perto da janela, mira
fixamente um ponto na rua e começa a fazer um som trêmulo, entrecortado, que
lembra, de longe, uma metralhadora rouca – você saberia dizer o que houve?
Dibra mata a charada:
esse é o ruído que o gato faz quando vê uma caça potencial que está fora do seu
alcance. Muito provavelmente, ele vislumbrou um passarinho ou uma borboleta
voando lá fora.
O mais curioso é que grande parte das emissões sonoras dos
gatos são dirigidas a nós, donos de um felino. É o que comprova um recente
experimento de psicologia evolutiva realizado por Nicholas Nicastro,
pesquisador da
Universidade de Cornell, Estados Unidos. Nicastro compilou
uma amostra de 100 vocalizações (miados) de 12 gatos. Depois, fez com que dois
grupos de voluntários (humanos, bem entendido) ouvissem as gravações. Pediu que
o primeiro grupo, com 26 pessoas, atribuísse notas de 1 a 7 conforme o nível de
prazer comunicado em cada uma das vocalizações.
O segundo grupo, com
28 indivíduos, deu notas na mesma escala tomando como critério a urgência ou
aflição dos miados. Nicastro então analisou os miados acusticamente e afirma
ter chegado a resultados consistentes.
Vocalizações mais
longas, do tipo miAAAUU, ganharam notas altas em aflição e baixas em prazer. É
o que se ouve quando o gato está com fome.
Com os miados mais curtos, foi o oposto: conceito alto em
prazer e baixo em urgência. Esses sons começariam em notas altas e depois
baixariam. Algo como MIIIau.
“Todo animal de estimação enfrenta o problema de obter o que
deseja dos seus donos humanos”, afirma Nicastro. Os gatos, convivendo com o
homem há 5 000 anos, desenvolveram seus meios vocais para conseguir o que
querem.
“Os cães utilizam
outros meios, como a linguagem corporal, a expressão facial etc. Existe uma
pesquisa em curso sobre o modo com que os seres humanos entendem os latidos,
mas, na minha opinião, os resultados ainda são inconclusivos”, diz o
pesquisador.
Nicastro, porém, não
está afirmando que os gatos falam. Quando miam, estão manipulando o dono para
obter o que desejam. Não é nada lisonjeiro, mas é algo que você precisa saber:
nós também somos animais treinados.
Nicastro acredita que o miado teve um papel central na
evolução dos gatos. Ele esteve em um zoológico da África do Sul gravando os
sons de um Felis silvestris lybica, o gato selvagem que é tido como ancestral
do Felis catus aí no seu colo.
A vocalização do gato selvagem não se revelou muito
expressiva: só sugeria irritação. Os primeiros gatos a serem adotados pelo
homem teriam se destacado, segundo Nicastro, por emissões vocais agradáveis. Os
gatos mais hábeis na manipulação vocal do ser humano teriam progressivamente
cruzado entre si, gerando ninhadas de gatinhos cada vez mais espertos no uso do
gogó.
Mesmo sem a intervenção consciente e direta do ser humano, o
resultado seria similar àquele processo que, nos termos da teoria da evolução
de Darwin, é conhecido como seleção artificial – a ingerência do ser humano
sobre a reprodução de determinada espécie, para obter espécimes melhorados (é o
que acontece, por exemplo, quando um criador de gado busca um reprodutor
premiado para cruzar com sua vaca mais gorda).
Há controvérsias. O especialista em comportamento animal
John Bradshaw, da Universidade de Southampton, Inglaterra, afirma que o uso dos
miados para manipular os donos é resultado de aprendizagem individual e não da
evolução.
Diferentes gatos
usariam diferentes tipos de miado para obter a mesma coisa. Nicastro, porém,
não está pronto a entregar os pontos: “Traçar uma distinção clara entre
aprendizagem e evolução é um erro. A evolução influi sobre a competência ou a
rapidez com que uma espécie aprende a produzir vocalizações apropriadas”.
Talvez um dia a ciência dê a palavra final sobre a
importância da evolução no miado (ou do miado na evolução).
Mas não estará dando
termo ao mistério que cerca o gato. Supõe-se que ele foi domesticado alguns
milhares de anos depois do cão. Sua convivência com o homem tem sido irregular,
acidentada, com períodos de deificação e perseguição.
No antigo Egito, o
gato foi literalmente a salvação da lavoura. Domesticado para controlar os
roedores na cultura de grão ao longo do rio Nilo, acabou merecendo um lugar no
panteão dos deuses. A deusa Bastet, que protege o deus-sol Rá de uma serpente,
é uma gata.
Uma lenda muçulmana conta que, certo dia, a gata de Maomé
estava dormindo sobre o manto do dono quando ele foi chamado para uma batalha.
Maomé não cogitou acordá-la: preferiu cortar o manto com a espada.
As crendices cristãs
não foram tão simpáticas com o gato. Na Idade Média, ele foi caçado em toda a
Europa por sua suposta associação com feiticeiras – o que contribuiu para que a
peste, transmitida pela pulga dos ratos, fizesse sua colheita mortal entre os
assustados cristãos.
O gato seria reabilitado nos séculos seguintes, mas, ainda
hoje, subsistem algumas superstições de provável origem medieval (gato preto dá
azar etc.).
Na literatura, esse singelo animal doméstico muitas vezes
parece ter um pé no mundo real e outro no além – o exemplo mais inquietante
será O Gato Preto, do americano Edgar Allan Poe (1809-1849). Mesmo o sorridente
Gato de Cheshire, criação do inglês Lewis Carroll (1832-1898) em Alice no País
das Maravilhas, tem qualquer coisa de bizarro em sua invisibilidade parcial.
A Rainha de Copas manda que o gato seja decapitado, mas seus
guardas são incapazes de cumprir a ordem. Como podem cortar a cabeça de um
bicho do qual só se enxerga o sorriso? É uma bela representação da nossa
relação com os bichanos. Independentes e orgulhosos, eles não se submetem a
nossos caprichos autoritários.
Os poetas têm uma predileção particular pelo gato. O francês
Charles Baudelaire (1821-1867) dedicou-lhe alguns poemas célebres de As Flores
do Mal. O americano naturalizado britânico T.S. Eliot (1888-1965) foi mais
longe e dedicou um livro inteiro aos felinos. No Brasil, poetas contemporâneos
como Haroldo de Campos, Ferreira Gullar e Nelson Ascher têm dado seguimento à
tradição, tomando o gato como tema de seus versos.
A imagem dos felinos na cultura pop não é unívoca. Temos o
simpático e psicodélico Felix, o gordo e cínico Garfield, e vários gatos
atrapalhados e famintos, sempre frustrados na perseguição da sua caça – os mais
famosos são Frajola e Tom.
A violência implícita
de desenhos como Tom e Jerry foi levada a extremos sangrentos na genial paródia
Comichão e Coçadinha, que figura em alguns episódios de Os Simpsons. E não
podemos esquecer os luxuriosos gatos de Striptiras, quadrinhos do brasileiro
Laerte.
Enquanto escreve essa matéria, o repórter está sob a
vigilância das pupilas oblongas do seu gato Sig, empoleirado sobre uma estante
de livros. O melhor lugar para ter um gato, de qualquer modo, não é sobre os
livros, mas no colo – bem aí onde ele se acomodou quando você, leitor, estava
ainda no primeiro parágrafo.
Bash Dibra usa a palavra “beleza” para descrever nossa
comunicação com os gatos. O autor de CatSpeak não está exagerando. A ciência
está apenas começando a entender essa curiosa comunicação entre espécies
diferentes. Mas quem tem um gato já a conhece muito bem.
Sete mitos sobre os gatos
1. Gatos têm sete vidas
A lenda deve ter surgido por causa das habilidades especiais
dos felinos. Ágil e elástico, o gato não é uma presa fácil. Tem um grande senso
de equilíbrio e sabe girar o corpo no ar para cair quase sempre sobre as quatro
patas. Mas não se engane: uma queda da janela do seu apartamento pode ser
fatal.
2. Gatos não precisam de cuidados
O gato é mais independente que o cachorro. Mas, como todo
animal doméstico, precisa de alimentação regular, instalações limpas, visitas
ao veterinário – e muito carinho.
3. Gatos são cruéis
Gatos conseguem girar as patas dianteiras de modo que a
parte de baixo fique voltada para dentro. Eles utilizam essa habilidade para
“brincar” com sua caça, jogando o infeliz ratinho de uma pata para a outra.
Parece sadismo, mas é só um comportamento instintivo.
4. Gatos não aprendem nada
Com paciência, carinho e alguma técnica, pode-se ensinar um
gato a atender quando chamado pelo nome. O bichano também é capaz de aprender
truques simples.
5. Gatos têm asma
Seu bichano pode sofrer de asma ou bronquite, mas essas
doenças não são comuns a todos os gatos. Ocorre que quem não está acostumado
com o ronronar característico do felino doméstico às vezes imagina que ele tem
problemas respiratórios. Há também quem pensa que o gato provoca asma. Crendice
sem fundamento. Pessoas asmáticas, no entanto, podem ter crises alérgicas em ambientes
compartilhados com gatos. A substância que detona essas crises está na saliva
do bichano.
6. Gatos gostam da casa, não do dono
Calúnia! Gatos são animais extremamente afetivos e adoram
seus donos. Há inclusive casos, embora mais raros do que entre os cachorros, de
gatos que sofrem de ansiedade da separação: ficam angustiados quando o dono sai
e se põem a destruir a casa.
7. Cães e gatos são inimigos
Um lulu criado sem a companhia de um bichano talvez ataque o
gato malandro que entrar em seu território. Mas não é uma implicância
particular: a mesma agressividade seria demonstrada diante de um gambá, por
exemplo. Cachorros não são predadores naturais dos gatos. Criados juntos, eles
aprendem
a conviver socialmente.
Frases
Ao contrário dos cães, que são gregários, gatos são
individualistas
Com os cachorros, você manda. Com os gatos, é preciso pedir.
Revista SuperInteressante
Para saber mais
NA LIVRARIA
CatSpeak, de Bash Dibra (com colaboração de Elizabeth
Randolph). Putnam, 2001
NA INTERNET
www.felinos.com.br
www.tica.org
www.cfainc.org
www.news.cornell.edu/releases/Maya2/cat_talk.hrs.htm
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