"Educação contra a violência e a barbárie"
A educação
deveria suscitar a crítica à ideologia vigente, voltando-se para as
contradições sociais, sendo sobretudo uma educação política
Por José Leon
Crochik
Resumo
Theodor W. Adorno escreveu sobre a educação escolar a partir do final de 1950...
Em um de seus
textos mais conhecidos — Educação após Auschwitz —, Adorno defendeu que nenhum princípio é mais
importante para a educação do que evitar novos genocídios, e que se os
educadores não tiverem consciência disso, novas tragédias iriam ocorrer; e,
como podemos constatar, não deixaram de ocorrer nas últimas décadas.
A FORMAÇÃO DO
INDIVÍDUO EM NOSSA SOCIEDADE TEM EM SUA BASE O MEDO SUSCITADO POR AMEAÇAS
SOCIAIS
Na busca do
entendimento da questão enunciada, Horkheimer e Adorno, em sua obra conjuntas — Dialética do esclarecimento —, deram ênfase
à história da civilização, indicando que a violência existente no fascismo é
componente presente no movimento do esclarecimento, que tem como objetivos
livrar o homem do medo e tomá-lo senhor.
Os autores mostraram que as diversas formas de
esclarecimento — magia, mito, religião, filosofia, ciência —, se pretendiam
enfrentar os perigos existentes e, assim, permitir a sobrevivência do homem, o
fizeram, ainda que de maneiras distintas, sob a forma de dominação, que se
tornou uma segunda natureza humana.
Em
outras palavras, para sobreviver, o homem teve de dominar a natureza que o
ameaçava, mas, como ele também é natureza, a dominação foi estendida a si
próprio e aos outros homens.
Na sociedade
moderna, a necessidade da dominação continua a existir; agora, porém, sem o
perigo enfrentado pelos nossos ancestrais, toma-se anacrônica, e, no entanto, é
preservada.
Se assim é, o que a move ainda é o medo. A
formação do indivíduo em nossa sociedade tem em sua base o medo; antes reação à
ameaça das forças da natureza, na civilização avançada, esse medo é suscitado
por ameaças sociais, que se puseram no lugar daquelas forças, e obrigam os
indivíduos atuar comforme o esperado.
Theodor W.
Adorno escreveu a respeito da educação escolar sua preocupação com a formação
do indivíduo, contudo, percorre sua obra. Ele defendeu que a educação deveria
suscitar a crítica à ideologia vigente; criticou a violência simbólica, mas sem
esquecer de criticar a sua base material. Pensou a educação escolar como
instituição necessária ao combate à violência; como formadora de indivíduos
autônomos, democráticos e emancipados, sem desconsiderar os limites desta
sociedade.
Na educação
escolar atual, a racionalidade técnica, que criticou, está presente no
pensamento administrativo, que aproxima a escola de um empreendimento
comercial, e no pensamento burocrático, que facilita a educação em massa; está
presente também na organização dos espaços e dos tempos escolares, na
organização das disciplinas e na de conteúdos, na parafernália tecnológica, que
auxilia o aprimoramento da didática, destinada a tornar o aprendizado mais
fácil e mais agradável, retirando-lhe conteúdo, seu caráter formador.
A
transformação da educação escolar em mercadoria, denúncia que Adorno fez à
cultura de forma geral, é atestada pelos diversos índices nacionais que indicam
aos pais dos alunos quais são as melhores escolas; que levam diretores,
professores e alunos à competição, que deve preparar últimos para garantir um
“lugar Sol”, nas palavras de Adorno “à base de cotoveladas”.
Já em sua
época, o frankfurtiano atribuía à escola o objetivo de formar o indivíduo para
resistir à violência própria e alheia destacando que essa violência se
apresenta na escola quer I seus métodos, quer nos
exercidos
pelos educadores e nas reações dos alunos.
O predomínio
da sociedade sobre os indivíduos não o impediu de considerar ações possíveis e
necessárias para enfrentar a violência, e a educação escolar, ainda que não a
gere imediatamente, pode e deve ter uma ação civilizadora no combate à
barbárie, que se apresenta de diversas formas.
Como, ao longo
de sua vida, a violência, presente nas duas guerras mundiais, no fascismo, no
Estado de Bem-Estar Social, nas sociedades de democracia formal, que continuam
a manter o germe do fascismo, mostrou-se perseverante em sociedades
desenvolvidas do ponto de vista cultural e tecnológico, suas indagações
voltaram-se para a questão: por que países e povos desenvolvidos, com condições
de não mais ter de produzir o extermínio entre os homens, provocaram os
horrores vividos principalmente no fascismo do século passado, que poderiam
proporcionar a paz?
Como escreveu
em um texto de sua maturidade — Dialética negativa — a história de nossa
civilização é a da violência; Adorno tinha clareza de que o fenômeno não era
novo, mas também que não era inevitável, e, ao lado da questão enunciada,
indicou que, na contemporaneidade, trata-se de uma nova forma de violência: asséptica,
planejada, industrial.
“Auschwitz” —
o campo de concentração e também a alegoria da violência nazista — expressou a
barbárie moderna: os campos de gás permitiram que os homens não fossem mais
assassinados, mas eliminados, como peças industriais defeituosas, que
atrapalham o desenvolvimento da sociedade.
A eliminação
dos homens pelas câmaras de gás expressava, de um lado, a dificuldade de alguns
homens continuarem a matar pessoalmente, e, de outro, a frieza necessária de,
mesmo sabendo do assassinato em massa, executá-lo.
Essa frieza, como veremos mais à frente,
constitui, segundo Adorno, um dos traços do indivíduo contemporâneo. Como
pensador materialista, defendeu que o fascismo e sua marca nos indivíduos — a
frieza — não eram fenômenos essencialmente psicológicos, e, sim, devidos às
condições objetivas; apesar disso não se furtou a destacar a importância da
dimensão psicológica, sempre relacionada à dimensão social.
Antes de
introduzir as propostas feitas por ele para o combate à violência pela
educação, cabe discorrer sobre como entendeu o surgimento do assassinato em
massa em sua forma industrial.
Da Dialética
do esclarecimento cabe também enfatizar, ainda que brevemente, que na história
desse movimento, do mito à ciência, a constituição do homem se diferenciando da
natureza foi acompanhada de uma tendência contrária:
a não diferenciação entre
ambos, no mito, pelo animismo, que dá vida ao que não tem; na ciência, pelo
pensamento reduzido à matemática, que tira vida do que a tem — do próprio
homem, que é administrado como qualquer outra
mercadoria.
O problema,
segundo os autores, não é propriamente o pensamento matemático, necessário para
o progresso , assim, para a libertação do homem do jugo da repetição que
percebe na natureza, e, sim, sua identificação com a verdade e sua utilização
para saber tudo de antemão: nada deve ser desconhecido, pois isso acalenta o
medo de destruição; desse modo, porém, o que é conhecido não é o fenômeno, mas
aquilo que permite subjugá-lo.
À libertação
do homem dos perigos da natureza correspondeu a dominação da natureza e, dessa
forma, o homem se viu prisioneiro da própria necessidade de dominar.
Quando a
sociedade tinha carência de produção material, a dominação poderia ter motivos
objetivos de produção material, a dominação poderia ter motivos objetivos para
se impor, mas em uma sociedade de abundância de produção — real ou potencial
esses motivos deixaram de existir, tornando irracional essa necessidade, e,
assim, toma-se uma das tarefas da educação combatê-la.
Na sociedade, a dominação aparece na
hierarquia entre os que detêm o poder e os que não o detêm, mas como a
hierarquia se irradia para todas as relações institucionais e pessoais, todos
lutam para obter poder e não ser dominados, reproduzindo assim a necessidade de
se libertar do jugo, dessa vez, do próprio homem.
Na escola, Adorno detecta uma dupla
hierarquia: a promovida pelo desempenho escolar e a expressa pelo desempenho
prático, mundano, corporal; o fascismo, segundo o filósofo, valorizou esta última
em detrimento da primeira.
Um dos
elementos do fascismo é o combate ao que seja intelectual, percebido como
frágil, não prático, sem serventia para a auto conservação. Esse ódio ao
intelectual, paradoxalmente desenvolvido também na escola, é gerado como forma
de atacar o que é desejado, mas julgado impossível de se obter — aqueles que se
sentem humilhados por não se julgarem e não ser julgados inteligentes como os
outros, por não conseguirem boas notas, combatem, no desprezo ao intelectual, o
que gostariam de ser.
Não é casual
que Horkheimer e Adorno em Dialética do esclarecimento tenham caracterizado o
fascismo como o “nivelamento por baixo”, como o ressentimento dos que eram
desprezados socialmente. Dessa forma, se
os que se destacam na hierarquia oficial — a que é expressa pelo desempenho nas
disciplinas escolares — contribuem com o desprezo em relação aos que estão na
base dessa hierarquia, estes últimos tendem a constituir outra hierarquia,
revelada por serem bem-sucedidos em esportes, por serem fisicamente mais
fortes, podendo dessa maneira se vingar dos primeiros.
O que ocorre
no cotidiano escolar não pode ser pensado isoladamente, sem referência ao que
está ocorrendo na sociedade e na cultura. Adorno insiste que, embora as
reformas pedagógicas sejam necessárias, elas não conseguem atingir seus
objetivos devido aos limites estabelecidos pela sociedade contemporânea, que se
expressa pelo capitalismo dos monopólios e não mais pelo capitalismo liberal, assentado no mercado.
As
necessidades mais do que nunca são criadas e o modo de produção calca-se na
racionalidade tecnológica; mais do que no século XIX, os trabalhadores, os que
ainda conseguem empregos, são apêndices da máquina, e devem ser formados como
máquinas para aumentar a eficiência.
Para a
reprodução desta sociedade, portanto, não é mais necessária a formação intelectual,
cultural, mas aquela que dê conta da racionalidade técnica, que é o pensamento
que relaciona meios e fins, sem pensar estes últimos, isto é, desconsiderando a
política.
Em seu texto
Educação após Auschwitz, Adorno pondera a contradição que a formação técnica
contém. A tecnologia é importante por criar as condições da felicidade e da
liberdade humana, mas aquele que desenvolve um caráter tecnológico — se
identifica com as máquinas — pode ter o prazer restringido a fazer o trabalho
bem-feito, a manipular os objetos e os indivíduos entre esses, de modo a obter
o que pretende.
Dever-se-ia enfatizar que a técnica deve ser a
ampliação do braço humano e, por isso, fundamental, mas que ela não é fim e,
ainda que seja produto humano, não expressa todas as qualidades dos homens.
A cultura, por
sua vez, como já afirmado antes, tende a se converter em mercadoria; deixa de
ser fundamental para a formação, pondo esta em questão, a não ser pela aparência
que devem ter aqueles que precisam mostrar conhecê-la, sem que efetivamente a
incorporem. Ela se tomou externa aos indivíduos instrumentalizando-os,
não mais os formando.
A formação,
segundo Adorno, nada mais é do que a introjeção da cultura; é por meio de sua
incorporação que os indivíduos conseguem se diferençar, por meio da linguagem,
do pensamento, que desenvolvem a partir daquela introjeção.
Assim, não é possível pensar o indivíduo
dissociado da cultura, que, quanto mais desenvolvida for, mais permite a
diferenciação individual, e vice-versa. Mas a cultura, que se converte em
mercadoria, só pode ser adquirida como valor de troca, com seu uso atrelado à
adaptação ao que é exigido pela autoconservação.
Os indivíduos
se formam para aumentar seu valor no mercado e não mais para se diferençar,
para compreender a sociedade em que vivem e auxiliar em sua modificação, com o
objetivo de torná-la justa e propiciadora da felicidade e da liberdade
individuais.
A obtenção da
cultura como um fim em si mesmo é criticada por Adorno, pois não permite, por si
só, compreender as injustiças sociais e evitar a defesa de estados totalitários
como o nazismo.
Colabora com a
impressão de que se é melhor do que os outros presente na frase: “Mas como,
você não sabia isso?”. De outro lado, a cultura que transmite somente o
instrumental para a adaptação não é menos danosa, pois forma para a sobrevivência
imediata, impedindo os indivíduos de compreender a violência que recai sobre
eles e, desse modo, contribui com a perpetuação dessa violência.
Adorno critica esses dois tipos de formação, e
recomenda que quando a cultura for valorizada como um fim em si mesmo, deve-se
lembrar que ela deve se voltar a criar condições humanas; quando quando o
aspecto pragmático for ressaltado, cabe lembrar que, se a adaptação é
necessária, auxilia a reprodução da injustiça social.
Caberia pensar a cultura, e assim a formação,
como aquela que se afasta do imediato para melhor compreender a constituição
social, para lutar pela alteração da sociedade no que for necessário.
O
frankfurtiano não faz a defesa da formação clássica; não cabe reavê-la, mesmo
porque as condições objetivas que lhe deram base já são outras; contudo, em uma
perspectiva histórica, é importante pensar na alteração das formas que a
cultura assume; mais do que isso, ele nos mostra que a formação clássica já era
problemática: para que alguns
pudessem
tê-la, boa parte da população deveria se sacrificar pela reprodução social, por
meio do trabalho sem sentido, ou pela mais absoluta pobreza.
Não obstante,
a formação clássica guardava a possibilidade de pensar além do existente, e,
assim, serve como crítica à atual pseudoformação.
O termo
pseudoformação não deve ser entendido de maneira idealista, como se houvesse
uma verdadeira formação, independentemente da história, mas como contrário à
formação que já seria possível. O termo “halbildung” é, em geral, traduzido, no
Brasil, por semiformação, que se refere a uma educação “mais ou menos”.
Em nosso entendimento, a tradução do termo por
pseudoformação é mais adequada ao pensamento do autor que argumenta que a
educação, tal como a execução de uma partitura musical, nãopode ser “mais ou
menos”.
Desse modo, uma
formação pela metade é falsa formação. Essa é uma discussão importante para
nós, brasileiros, que, em geral, julgamos ser melhor uma educação precária a
nenhuma, pois para Adorno uma falsa formação nos leva a pensar que conhecemos o
que não conhecemos.
Trata-se de um conhecimento externo, não
incorporado. Por isso, o pseudoformado se irrita quando é contrariado, pois
sabe que não detém o conhecimento que pretende demonstrar.
Cabe insistir
que a pseudoformação é gerada por condições objetivas, isto é, sociais e, desse
modo, não se trata de um fenômeno a ser corrigido pela vontade dos indivíduos.
Por ser suscitada socialmente, deve-se buscar
seus determinantes sociais. Para a educação, resta, o que não é pouco,
denunciar a pseudoformação e as condições que a geram, e não torná-la mais uma
vez um atributo de responsabilidade individual.
NUMA CULTURA
PRENHE DE
IMAGENS,
ADORNO INDICA A RETRAÇÃO
DA IMAGINAÇÃO
Em Teoría de la pseudocultura, Adorno
mostra como a modificação de práticas educacionais comporta também elementos
problemáticos. Decorar poesias ou a tabuada não faz nenhum sentido; no entanto,
sem nenhum conhecimento retido o pensamento não é possível; o saber centrado na
autoridade pode ser criticado, mas o enfraquecimento da autoridade não
encontrou nenhum sucessor melhor.
O progresso da
educação, assim como o progresso em geral, não pode ser pensado linearmente;
além do que é necessário entender que ele não se tem voltado, nos últimos
tempos, de modo predominante para o bem-estar da humanidade, mas para a
reprodução desta sociedade.
O professor da
escola básica, sobretudo pública, é desprestigiado socialmente, o que se
associa à desvalia das profissões intelectuais e das que não oferecem riscos ao
trabalhador. É considerado como aquele que faz o trabalho sujo: usa seu poder
para disciplinar as crianças, consideradas frágeis.
Adorno, ao analisar os tabus acerca da
profissão de ensinar, evidencia a existência da resistência ao professor, que é
simultaneamente respeitado e desprezado.
É respeitado
como representante da tradição, do conhecimento acumulado; é desprezado por sua
imagem de pouco afeito a questões práticas; a esse tipo de imagem corresponde o
ridículo a que é exposto nas conversas entre os alunos;
mostrando- se alheio ao mundo, ressalta sua
“esquisitice”, que os alunos não perdoam.
À disciplina a que são obrigados, os
alunos respondem com a agressão subterrânea ou visível; qualquer traço do
professor que lembre a natureza não dominada — algum tique, um vício de
linguagem, uma roupa fora dos padrões, os descuidos com a aparência ou o zelo
excessivo com ela — é motivo para chacota. Essa chacota reproduz o desprezo
fascista ao intelectual'.
Revista Educação: Especial : biblioteca do Professor.
Adorno 10 Pensa a Educação. Por uma educação Politica.
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