“CRIANÇAS ÍNDIGO: O Covarde Doping das Crianças”
O que o aumento do consumo da “droga da obediência”, usada
para o tratamento do chamado Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade,
revela sobre a medicalização da educação?
ELIANE BRUM
Um estudo divulgado na semana passada pela Anvisa (Agência
Nacional de Vigilância Sanitária) deveria ter disparado um alarme dentro das
casas e das escolas – e aberto um grande debate no país.
A pesquisa mostra que, entre 2009 e 2011, o consumo do
metilfenidato, medicamento comercializado no Brasil com os nomes Ritalina e
Concerta, aumentou 75% entre crianças e adolescentes na faixa dos 6 aos 16
anos.
A droga é usada para combater uma patologia controversa
chamada de TDAH – Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade.
A pesquisa detectou ainda uma variação perturbadora no
consumo do remédio: aumenta no segundo semestre do ano e diminui no período das
férias escolares.
Isso significa que há uma relação direta entre a escola e o
uso de uma droga tarja preta, com atuação sobre o sistema nervoso central e
criação de dependência física e psíquica.
Uma observação: o metilfenidato é conhecido como “a droga da
obediência”
O boletim da Anvisa é uma indicação de que o uso abusivo do
metilfenidato pode se tornar um problema de saúde pública no Brasil.
A pesquisa é o ponto de partida para vários caminhos de
investigação, inclusive jornalística.
Por que Porto Alegre é a capital brasileira com maior
consumo da droga?
Por que o Distrito Federal é, entre as unidades da federação,
a que registrou maior uso de metilfenidato?
Por que Rondônia, entre os estados do norte, tem um consumo
13 vezes maior que o estado com menor consumo registrado?
O que diferencia os médicos brasileiros, concentrados nas
regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul, que mais prescrevem o medicamento no
Brasil?
E por que os três maiores prescritores, dois deles
profissionais do Distrito Federal, são os mesmos nos três anos pesquisados?
Em 2011, as famílias brasileiras gastaram R$ 28,5 milhões na
compra da droga da obediência – R$ 778,75 por cada mil crianças e adolescentes
com idade entre 6 e 16 anos
É preciso seguir as pistas e compreender o que está
acontecendo.
A TDAH seria um transtorno neurológico do comportamento que
atingiria de 8 a 12% das crianças no mundo. No Brasil, os índices são bastante
discordantes, alcançando até 26,8%.
Os sintomas considerados para o diagnóstico em crianças são:
- apresentar dificuldade para prestar atenção e passar muito
tempo sonhando acordada; parecer não ouvir quando se fala diretamente com ela;
- distrair-se facilmente ao fazer tarefas ou ao brincar;
esquecer as coisas; mover-se constantemente ou ser incapaz de permanecer
sentada;
-falar excessivamente; demonstrar incapacidade de brincar
calada; atuar e falar sem pensar; ter dificuldade para esperar sua vez;
interromper a conversa de terceiros; demonstrar inquietação.
Um parêntese.
A droga tem sido usada por jovens e adultos de todas as
idades, na crença de que ela potencializaria a atenção e o rendimento.
É difícil quem não conheça alguém que já usou o medicamento
para fazer provas na escola ou na universidade, assim como em vestibulares e
concursos.
O uso é disseminado no ambiente profissional, utilizado por
quem quer melhorar seu desempenho ou precisa terminar um trabalho em prazo
curto.
Também é popular entre aqueles que querem ficar “bombados”
para uma balada.
Alguns recorrem ao mercado ilegal, outros simulam os
sintomas de TDAH nos consultórios médicos para conseguir a receita.
Sobre esse tipo de consumo há unanimidade: é totalmente
contraindicado. Entre as considerações finais, os autores da pesquisa da
Anvisa, Márcia Gonçalves de Oliveira e Daniel Marques Mota, afirmam:
- Os dados demonstram uma tendência de uso crescente no
Brasil.
No entanto, a pergunta que precisa ser respondida é se esse
uso está sendo feito de forma segura, isto é, somente para as indicações
aprovadas no registro do medicamento e para os pacientes corretos, na dosagem e
períodos adequados.
O uso do medicamento metilfenidato tem sido muito difundido
nos últimos anos de forma, inclusive, equivocada, sendo utilizado como “droga
da obediência” e como instrumento de melhoria do desempenho seja de crianças,
adolescentes ou adultos.
Em muitos países, como os Estados Unidos, o metilfenidato tem
sido largamente utilizado entre adolescentes para melhorar o desempenho escolar
e para moldar as crianças, afinal, é mais fácil modificá-las que ao ambiente.
Na verdade, o medicamento deve funcionar como um adjuvante
no estabelecimento do equilíbrio comportamental do indivíduo, aliado a outras
medidas, como educacionais, sociais e psicológicas.
Nesse sentido, recomenda-se proporcionar educação pública
para diferentes segmentos da sociedade, sem discursos morais e sem atitudes
punitivas, cuja principal finalidade seja a de contribuir com o desenvolvimento
e a demonstração de alternativas práticas ao uso de medicamentos.
O documento pode ser lido na íntegra aqui.
Além do questionamento proposto pelos autores, outras
perguntas podem e devem ser colocadas: existe um doping legalizado das
crianças?
A escola, em vez de olhar cada aluno a partir da sua
história e de sua singularidade, está sendo agente de um processo de
homogeneização e silenciamento de crianças e adolescentes considerados
“diferentes”?
Estaria a droga da obediência sendo usada como uma espécie
de “método pedagógico” perverso?
O que isso significa?
E por que não há uma discussão mais ampla em toda a
sociedade brasileira?
A controvérsia sobre a droga da obediência e o chamado
Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) é grande.
Por uma série de razões, porém, pouco chega à população.
É comum ouvir nas ruas, nas escolas e nas festas infantis
que alguma criança é “hiperativa”, já que o diagnóstico e a crença de que a
suposta doença possa ser resolvida com uma droga se difundiu na sociedade.
Para uma parcela significativa das pessoas, soa como uma
daquelas verdades “científicas” inquestionáveis.
Na realidade, os questionamentos são muitos.
Há quem denuncie que os diagnósticos são mal feitos, levando
à prescrição equivocada do medicamento.
Há quem defenda que a doença sequer existe – seria uma
invenção promovida pelo marketing da indústria farmacêutica.
Para colaborar com o acesso ao que poderia ser chamado de “o
outro lado do TDAH”, elenquei algumas das principais críticas e ponderações
sobre a patologia e o uso da droga, feitas por pesquisadores das áreas da
medicina, psicologia, psicanálise e educação.
Todos os artigos citados – exceto um, ainda inédito – têm
livre acesso e podem ser lidos na íntegra na internet.
O foco principal é a relação entre a droga/diagnóstico e a
escola, explicitada de forma inequívoca pelo boletim da Anvisa.
1- A medicina e a definição da “normalidade”
A história da medicina é uma história também de como ela
deixa de ser o estudo das doenças para passar a definir o que é a normalidade.
“A medicina se atribui todo o universo de relações do homem
com a natureza e com outro homem, isto é, a vida.
Legislando sobre hábitos de alimentação, vestuário,
habitação, higiene, aplica a esses campos a mesma abordagem empregada frente às
doenças.
Adotando (assim) um discurso genérico, aplicável a todas as
pessoas, porque neutro”, afirma Maria Aparecida Affonso Moysés, professora
titular de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, em um artigo
muito interessante, intitulado “A Medicalização na Educação Infantil e no
Ensino Fundamental e as Políticas de Formação Docente”(leia aqui).
“Com o consentimento da sociedade, que delega à medicina a
tarefa de normatizar, legislar e vigiar a vida, estão colocadas as condições
históricas para a medicalização da sociedade, aí incluídos comportamento e
aprendizagem.(...)
É preciso abolir as particularidades, o subjetivo, a
imprecisão, para que o pensamento racional e objetivo se imponha.
Não se esqueça que o discurso médico, nesse momento – aliás,
o discurso científico, em qualquer momento – está afinado com as demandas dos
grupos hegemônicos.”
A medicalização, segundo a pediatra, é resultado do processo
de conversão de questões sociais e humanas em biológicas – transformando os
problemas da vida em doenças ou distúrbios.
É neste contexto que teria surgido uma doença que impediria
a criança de aprender, com outros nomes antes de ser registrada como TDAH.
É assim que se medicaliza a educação, transformando
problemas pedagógicos e políticos em questões biológicas e médicas.
“O discurso médico irá apregoar a existência de crianças
incapazes de aprender, a menos que submetidas a uma intervenção especial – uma
intervenção médica”, afirma.
E conclui: “A atuação medicalizante da medicina consolida-se
ao ser capaz de se infiltrar no pensamento cotidiano, ou, mais precisamente, no
conjunto de juízos provisórios e preconceitos que regem a vida cotidiana.
E a extensão (e a intensidade) em que esse processo ocorre
pode ser apreendida pela incorporação do discurso médico, não importa se
científico ou preconceituoso, pela população.
A medicina constrói, assim, artificialmente, as ‘doenças do
não-aprender-na-escola’ e a consequente demanda por serviços de saúde
especializados, ao se afirmar como instituição competente e responsável por sua
resolução.
A partir deste momento, a medicina se apropriará cada vez
mais do objeto aprendizagem.
Sem mudanças significativas, apenas estendendo seu campo
normativo”.
Em “Os Equívocos da Infância Medicalizada” (leia aqui),
Margareth Diniz, professora da Universidade Federal de Ouro Preto, com
doutorado em educação, explicita a diferença entre “medicar” e “medicalizar”:
“Medicar pode ser necessário, desde que caso a caso.
Já a medicalização é o processo pelo qual o modo de vida dos
homens é apropriado pela medicina e que interfere na construção de conceitos,
regras de higiene, normas de moral e costumes prescritos – sexuais,
alimentares, de habitação – e de comportamentos sociais.
Este processo está intimamente articulado à ideia de que não
se pode separar o saber – produzido cientificamente em uma estrutura social –
de suas propostas de intervenção na sociedade, de suas proposições políticas
implícitas.
A medicalização tem, como objetivo, a intervenção política
no corpo social”.
2- A escola e o ciclo da medicalização da infância
O caminho que leva ao diagnóstico de TDAH e à prescrição da
droga da obediência, entre os mais pobres e usuários da rede pública de ensino,
inicia na escola, a partir das dificuldades de aprendizagem e/ou insubordinação
de determinada criança ou adolescente.
Como a família em geral não conseguiria dar uma resposta ao
problema, a escola ou encaminha ao médico, ou aciona o conselho tutelar.
Entre as crianças mais ricas, clientes do sistema privado de
ensino, o ciclo é semelhante, com exceção de que estas não estão vulneráveis à
tutela e à vigilância do Estado.
Neste caso, a escola encaminha ao psicólogo e este ao
neuropediatra – ou diretamente ao neuropediatra, que prescreve o medicamento.
Esta é a análise da psicanalista Michele Kamers, professora
do curso de psicologia do Ibes-Sociesc, coordenadora dos cursos de
especialização em psicologia hospitalar e da saúde e psicopatologia da infância
e da adolescência do Hospital Santa Catarina, de Blumenau, e mestre em educação
pela Universidade de São Paulo.
No artigo intitulado “A Fabricação da Loucura na Infância:
Psiquiatrização do Discurso e Medicalização da Infância”, ainda inédito, ela
afirma que a escola se converteu em um mecanismo de inclusão da criança no
campo do saber médico-psiquiátrico.
“As escolas, as unidades de saúde e as clínicas privadas
agenciam e legitimam a intervenção médica e farmacológica sobre a criança,
fazendo com que a medicalização venha se convertendo na principal forma de
tratamento utilizada para responder às demandas sociais realizadas pelas
instituições de assistência à infância”, diz.
“A medicina, juntamente com a assistência psicológica,
social e pedagógica, forma uma rede de tutela e encaminhamentos múltiplos.
A partir do momento em que a criança e sua família são
capturadas, não conseguem mais sair.”
É corriqueiro, segundo Margareth Diniz, receber pais em
busca de tratamento para seus filhos por exigência da escola.
“Todos nós que nos ocupamos da clínica também estamos
habituados com solicitações de tratamento de crianças a partir de uma exigência
da escola em relação à sua inadaptação, ou inadequação às regras mais
elementares de seu aprendizado e de sua socialização.
Normalmente são os pais, mais especificamente as mães, que
nos formulam esse pedido.
O que torna esses pedidos curiosos é que, invariavelmente,
trazem consigo um enunciado pedagógico nos seguintes termos:
‘A escola chegou à conclusão que esta criança necessita de
um acompanhamento’”.
A psicóloga Renata Guarido, que defendeu uma tese de
mestrado na Universidade de São Paulo intitulada “O Que Não Tem Remédio,
Remediado Está: a Medicalização da Vida e Algumas Implicações do Saber Médico
na Educação”, mostra como a criança passou de objeto da pedagogia a objeto da
medicina.
Renata afirma que a medicina passou a determinar quem era
“educável ou ineducável” (leia aqui):
“Vemos as crianças e suas famílias submetidas ao poder
exercido pela constituição de um domínio do saber médico-psicológico, sem que o
contexto de seus sofrimentos, bem como sua possibilidade de tratamento, sejam
orientados para outras formas de consideração da subjetividade, que não a
normalizante e de ‘treinamento’”.
Em sua análise, Renata reforça como são corriqueiras hoje
nas escolas as cenas em que professores e coordenadores dão o diagnóstico de
TDAH diante de determinados comportamentos das crianças e adolescentes,
encaminhando-os para avaliação psiquiátrica, neurológica e psicológica.
Também já faz parte da rotina professores e outros agentes
escolares perguntarem aos pais de um aluno em tratamento se ele foi corretamente
medicado naquele dia.
“Tais procedimentos nos permitem entrever que estão crentes
de que a variação no uso do remédio é responsável pela variação dos
comportamentos e estados psíquicos das crianças, e que esta não teria nenhuma
relação com variações, mudanças ou experiências no interior do cotidiano
escolar. (...)
Ao assumir e validar o discurso médico-psicológico, a
pedagogia não deixa de fazer a manutenção dessa mesma prática,
desresponsabilizando a escola e culpabilizando as crianças e suas famílias por
seus fracassos”.
3- A criança como objeto, não mais como sujeito
Entre as principais críticas feitas por aqueles que alertam
para o processo de medicalização da infância – e especificamente sobre o TDAH e
a droga da obediência – está a constatação de que as crianças deixam de ser
escutadas na sua singularidade, como um protagonista que tem uma história e
está inserido num contexto familiar e social, para se tornar um objeto com uma
falha no corpo, sujeito à intervenção e à correção por medicamentos.
Assim, as crianças e adolescentes têm sido calados naquilo
que estão tentando dizer a pais e professores, em nome de um ideal de
“normalidade” determinado pelo olhar médico e legitimado e reproduzido pela
escola – e também pelos dispositivos de
vigilância do Estado.
O que se cala são os conflitos – que deveriam ser os
propulsores do ato de educar.
Em O Livro Negro da Psicopatologia Contemporânea (Via
Lettera, 2011), o psicanalista Alfredo Jerusalinsky escreve um capítulo
intitulado “Gotinhas e comprimidos para crianças sem história – uma
psicopatologia pós-moderna para a infância”.
Ele afirma: “Não se questiona o que quer dizer este ponto,
esta palavra ou este gesto fora do lugar. (...)
Na trajetória que estamos descrevendo, foi se apagando esse esforço
por ver e escutar um sujeito, com todas as dificuldades que ele tivesse, no que
tivesse para dizer, e foi-se substituindo o dado ordenado segundo uma
nosografia (descrição das doenças) que apaga o sujeito. (...)
É assim que os problemas deixam de ser problemas para serem
transtorno. É uma transformação epistemológica importante, e não uma mera
transformação terminológica.
Um problema é algo para ser decifrado, interpretado,
resolvido; um transtorno é algo a ser eliminado, suprimido porque molesta.
Os nomes das categorias não são inocentes”.
Escrevi sobre este livro na coluna “Os Robôs Não Nos Invejam
Mais”, que pode ser lida aqui.
Em artigo já citado, Renata Guarido mostra que não é calada
apenas a voz dessas crianças e adolescentes classificados como fora do padrão
de uma pretensa normalidade.
Mas até mesmo o seu nome é apagado.
“Não é incomum observar, nas unidades de saúde ou mesmo nas
escolas, que o nome do paciente ou do aluno seja substituído por sua
classificação diagnóstica – estranha nomeação dos indivíduos que põe em relevo
o lugar que ocupam na escala normal”, diz Renata.
“A medicalização em larga escala das crianças nos tempos
atuais pode ser lida também como apelo ao silêncio dos conflitos, negando-os
como inerentes à subjetividade e ao encontro humano.
Que o discurso pedagógico contribua para a manutenção desse
tipo de recurso deve ser objeto constante de crítica em direção à possibilidade
de que o lugar do ato educativo seja redefinido”
Em “Hiperatividade: o ‘Não Decidido’ da Estrutura ou o
‘Infantil’ ainda no Tempo da Infância”, as psicanalistas Viviane Neves Legnani,
professora da Universidade de Brasília (UnB), e Sandra Francesca Conte de
Almeida, professora da Universidade Católica de Brasília, refletem sobre a TDAH
a partir da descrição de um caso concreto (leia aqui).
Elas afirmam: “Nossa experiência com escolas permitiu
observar que muitos professores se servem dos indicadores descritivos que
acompanham o diagnóstico de TDAH para sustentar uma prática pedagógica
‘didaticamente planejada’ para lidar ‘com os difíceis alunos portadores de
hiperatividade’.
O preço deste planejamento, no entanto, nem sempre é
considerado: a impossibilidade de a criança encontrar o seu lugar na escola, a
partir de sua singularidade.
Como consequência da padronização pedagógica,
‘cientificamente’ estruturada, tem-se que o educador não escuta e não legitima
a palavra dita pela criança, já que esta é vista como ‘doente’ e, portanto,
incapaz”
4- Ninguém se responsabiliza – ou por que a medicalização prospera
Não é apenas a escola que se desresponsabiliza, quando
aquilo que pertence ao humano é tratado como patologia, mas também a criança e
o adolescente, na tarefa de criar uma vida.
Ao serem classificados como doentes ou portadores de um
transtorno, e ao introjetarem este ser/estar no mundo como doentes ou
portadores de um transtorno, é o diagnóstico que lhes determina o destino.
Na hipótese de realizar qualquer conquista, ela é computada
na conta da droga.
Em “O Sujeito Refém do Orgânico” (leia aqui), Renata Guarido
afirma:
“Crianças e adultos, sendo desresponsabilizados de sua
implicação com aquilo que lhes acontece, tornam-se também impotentes para
atuarem sobre seus sofrimentos e aprendizados.
E a impotência é então mais um efeito deste discurso
biológico.
Só é visto como potente o especialista que saberia o que
fazer diante do diagnóstico que profere.
Sendo o aprendizado descrito como efeito do funcionamento
cerebral, da estimulação correta deste órgão que nos governa, temos sua
descrição reduzida a uma dimensão privada, que ocorre no interior do indivíduo
e não a partir do laço entre dois ou mais sujeitos.
Ou seja, o aprendizado perde o caráter de ser fruto da ação
humana, dimensão do encontro na pluralidade própria do mundo público, onde produzimos
história”.
Margareth Diniz analisa por que a aceitação desse discurso
ecoa na sociedade e é por ela reproduzido:
“A criança e o adolescente esperam do outro que lhe responda
algo acerca do enigma de sua existência, e os outros esperam das crianças que
se conduzam na vida de modo a responder aos seus ideais.
A fim de salvar os pais de tamanha angústia diante do não
saber, surgem as tentativas de tornar científicas as respostas a estas
questões, na busca de aplacar o mal-estar.
A ciência começa a forjar um saber que não pertence nem ao
pai, nem a mãe.
Estes são levados a interferirem cada vez menos na educação
dos filhos. Entra em cena a figura dos especialistas, autorizados
principalmente pelo discurso da mãe, que demonstra um verdadeiro fascínio pela
promessa de um saber total, sem furos”.
Não são apenas os professores, mas também os pais que
passaram a exigir diagnóstico e medicamento para calar os conflitos na escola e
dentro de casa.
Afinal, é muito mais fácil lidar com uma “doença”, quase uma
fatalidade, que diz respeito apenas ao funcionamento de um corpo e para a qual
existiria uma pílula milagrosa, do que escutar o que uma criança ou um
adolescente está dizendo com seu comportamento.
“Os pais acusam as escolas de rotular suas crianças de
hiperativas indiscriminadamente, antes mesmo de obter um diagnóstico médico,
mas há relatos de que também alguns pais impacientes andam utilizando o
diagnóstico de hiperatividade como desculpa para entupir seus filhos de remédio
e mantê-los ‘sossegados’, daí que o medicamento tenha sido batizado por ‘droga
da obediência’”, afirma Margareth.
“Isso os desculpabiliza por não estarem dando conta de impor
limites aos filhos, por exemplo, em relação à hora de dormir ou de desligar
seus computadores e jogos eletrônicos.”
5- O marketing da indústria farmacêutica
O transtorno de hiperatividade pode ser um daqueles casos em
que a droga ajuda a moldar o diagnóstico.
Críticos da medicalização afirmam que não é comprovada a
existência de uma doença que só altere o comportamento e a aprendizagem.
Neste sentido, a disseminação do diagnóstico de TDAH
inverteria a lógica da medicina, na qual seria preciso primeiro comprovar a
doença e depois tratá-la.
O fenômeno obedeceria mais à lógica do mercado do que a da
saúde – com a relação próxima e, em alguns casos, promíscua, entre laboratórios
e médicos.
“A ligeireza (e imprecisão) com que as pessoas são
transformadas em anormais é diretamente proporcional à velocidade com que a
psicofarmacologia e a psiquiatria contemporânea expandiram seu mercado.
Não deixa de ser surpreendente que o que foi apresentado
como avanço na capacidade de curar tenha levado a ampliar em uma progressão
geométrica a quantidade de doentes mentais”, alertam Alfredo Jerusalinski e
Silvia Fendrik em O Livro Negro da Psicopatologia Moderna.
“A produção de saber sobre o sofrimento psíquico encontra-se
associada à produção da indústria farmacêutica de remédios que prometem aliviar
os sofrimentos existenciais.
O consumo em larga escala dos medicamentos e o crescimento
exponencial da indústria farmacêutica tornam-se elementos indissociáveis do
exercício do poder médico apoiado em um saber consolidado ao longo do século
XX”,
analisa Renata Guarido.
“Se a psiquiatria clássica, de forma geral, esteve às voltas
com fenômenos psíquicos não codificáveis em termos do funcionamento orgânico,
guardando espaço à dimensão enigmática da subjetividade, a psiquiatria
contemporânea promove uma naturalização do fenômeno humano e uma subordinação
do sujeito à bioquímica cerebral, somente regulável por uso de remédios.
Há aí uma inversão não pouco assustadora, pois na lógica
atual de construção diagnóstica, o remédio participa da nomeação do transtorno.
Visto que não há mais uma etiologia (estudo das causas da
doença) e uma historicidade a serem consideradas, pois a verdade do
sintoma/transtorno está no funcionamento bioquímico, e os efeitos da medicação
dão validade a um ou outro diagnóstico.”
*******************
Estes cinco pontos são apenas algumas pistas para
compreender o crescimento do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade
entre as crianças e adolescentes e a disseminação da droga da obediência.
Dito de outro jeito, questionar o aumento dos “anormais” nas
escolas brasileiras.
Ou dos “desobedientes”.
A falta de espanto de pais e professores diante do fenômeno
mostra como a medicalização está naturalizada na sociedade brasileira.
Afinal, parte destes pais e professores também fazem, no seu
próprio cotidiano, o uso de drogas legais para silenciar suas dores humanas.
Por que acreditariam que com seus filhos e alunos seria
diferente?
Drogar-se, legalmente, é uma marca da nossa época.
Ninguém sabe quais serão os efeitos a longo prazo do uso
contínuo do metilfenidato sobre o cérebro em formação das crianças.
O que acontecerá no futuro com essa geração legalmente
drogada ainda é uma incógnita.
Pelo menos, valeria a pena pensarmos no presente: por que
estamos dopando crianças e adolescentes em vez de tentar escutá-los e
entendê-los em sua singularidade?
E o que isso diz sobre nós, os adultos?
Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista.
Autora de um romance - Uma Duas (LeYa) - e de três livros de
reportagem:
Coluna Prestes – O avesso da lenda (Artes e Ofícios), A vida
que ninguém vê (Arquipélago, Prêmio Jabuti 2007) e O olho da rua - uma repórter
em busca da literatura da vida real (Globo)
elianebrum@uol.com.br
Twitter:@brumelianebrum
(Foto: Lilo Clareto/ Divulgação)
Fonte:
http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2013/02/o-doping-das-criancas.html
http://ensinamentos-das-pleiades.blogspot.com.br/2013/03/criancas-indigo-o-doping-das-criancas.html
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