sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

A imaginação é a Estrela do homem




 O MUNDO DAS FORMAS AUTOLUMINOSAS


E, no momento da morte, para os budistas tibetanos, há um encontro frente a frente com a luz clara, branca, da consciência do Buda. Se não houver esse reconhecimento, a alma começa a afundar cada vez mais em profunda e hipnótica ilusão, e finalmente num novo nascimento.

Na metáfora em que a luz se transforma em consciência, temos a importante idéia de que “ver com o olho da mente” pode abranger sua forma própria de lucidez, em lugar de ser sempre a ilusão ou delírio, como ocorre quando nossos sonhos mascaram a “realidade”.

Nesta parte, examinarei a relação metafórica entre a luz interior e a luz exterior. Tradicionalmente, o mundo da imaginação é o mundo astral estelar, ou do espírito. É chamado em certos textos yogues de mundo das “formas auto-luminosas”. (Talvez seja por isso que a consciência da luz do dia perde-se tão facilmente no mundo dos sonhos. A luz da consciência, que busca iluminar os objetos de nossos pensamentos, bruxuleia quando diante de formas auto luminosas.)


Nas Yoga-Sutras de Patanjali encontramos uma antiga formulação da natureza ambivalente da imaginação: “A natureza psíquica, assumindo a cor do Visionário e das coisas vistas, leva à percepção de todos os objetos.”7 A tarefa do iogue, através de sua disciplina, é manter imóvel Proteu — “a natureza psíquica”, o organismo vivo da imaginação.

O poeta Blake procurou levar a imaginação de volta às suas origens divinas:

O eterno Corpo do Homem é A Imaginação, ou seja, o próprio Deus O Corpo Divino: Jesus: somos seus Membros.
Ele se manifesta em suas Obras de Arte (Na Eternidade Tudo é Visão).9

Blake achava que o artista era o sacerdote da imaginação e que estava mais perto da verdadeira visão espiritual do que o filósofo. Lembramos a sua figura mitológica pessoal para a vida criativa, Los, o fogoso artista ferreiro com sua raiva e paixão, o adversário de Urizen — personificação da “tua razão” (ver lhe Four Zoas).

Também Coleridge, como já disse, reconhecia uma forma primária de imaginação, não baseada em objetos do mundo exterior — função meramente de espelho — mas no poder criativo e visionário da própria vida.  O poeta ou artista criador é o iogue do Ocidente, que estabelece relação com essa função mais profunda da imaginação. Ao contrário do iogue, ele não busca banir toda a ilusão para encontrar a verdade única. Ele procura, mais como o xamã, as verdades nas ilusões, e partilha as visões.

A alma ou imaginação não se ocupa da simples matéria ou do espírito puro; usando uma expressão abrangente, ela uma atividade psicossomática, que, como um arco-íris, liga extremos harmoniosamente e produz um “novo nível de ser”, um “terceiro”, que nada mais é do que a própria alma.

 A alma cria-se a si mesma, imaginando-se, e existe apenas enquanto imagina. A verdade e a realidade da alma são criadas e existem no que é criado. A imaginação é uma ocorrência autônoma, auto-originadora, simples presenciar, o “alguma coisa” que, como diriam os budistas, é “apenas assim”. No sentido rigoroso da palavra, é uma experiência colorida.

Hillman, que inspirou boa parte do pensamento de Avens, sugeriu, em seu clássico Revisioning Psychology, que a psique tem uma necessidade fundamental de ver através de si mesma, de tornar transparentes as idéias e imagens que sempre parecem reais (a raiz latina de “real” é res; literalmente, “coisa”) quando nos ocorrem.

 A palavra grega eidos é a raiz tanto de “idéia” (um pensamento por meio do qual vemos) quanto de “imagem” (eidolon, “forma”). “A alma parece sofrer quando seu olho interior está obstruído”, escreveu Hillman.

[E] o aprendizado psicológico, ou psicologização, parece representar o desejo de luz da alma, como a mariposa busca a chama. A psique quer encontrar-se vendo através; e gosta ainda mais de ser  iluminada vendo através de si mesma, como se o simples ato de ver através tornasse a alma transparente.’4

“Quando as perturbações da natureza psíquica foram todas acalmadas, então a consciência, como um cristal puro, assume
a cor daquilo em que repousa, seja quem percebe, a percepção, ou a coisa percebida.”8 Esse princípio aparentemente simples é a raiz da metáfora para todas as práticas de meditação do Oriente, o caminho para a visão verdadeira, o autoconhecimento, até mesmo para a consciência cósmica. Haverá alguma outra de profundidade e eficácia equivalentes na tradição espiritual do  Ocidente?

 Em geral, a visão nos dá as mais ricas metáforas para a consciência e nos apresenta um mundo caracterizado por superfícies, contornos, texturas, cores e outras coisas.

Também traz transparência, dimensionalidade e profundidade — bem como opostos, sob a forma de opacidade, obscuridade e sombra. Acima de tudo, a visão como uma metáfora para a consciência se reforça com as características de seu próprio meio iluminante, a luz.

A fala cotidiana está cheia de metáforas visionárias: ‘Agora eu vejo”, “Poderia lançar um pouco de luz sobre isto?” e “Comecei a ver que... E nos referimos às mais completas percepções da consciência humana como cheias de luz: iluminações. A alma do místico assemelha-se ao olho pela sua capacidade de perceber a iluminação viva da experiência espiritual. A alma vê através da maya, a superficie ilusória das coisas.

As imagens da imaginação nem sempre são ‘imaginárias” ou inverídicas, mas sim “imaginais” , apresentando verdades de um tipo diferente, interior. A psique, ou alma, é a imaginação. 5 Jung, porém, disse isso com muita elegância:

A mitologema protéica e o bruxuleante símbolo expressam os processos da psique de maneira muito mais incisiva, e, em última análise, muito mais claramente do que o mais claro dos conceitos; pois o símbolo não só transmite uma visualização do processo, como também — e talvez isto tenha a mesma importância — provoca uma reexperiência daquela penumbra que só podemos aprender a compreender pela empatia inofensiva, mas que é dispersada por uma claridade excessiva.6

A “claridade excessiva” de que fala Jung é a luz da consciência diurna que espera contornos nítidos nas coisas — e nas idéias; isso é muito diferente do mundo protéico, poético, e não obstante simbolicamente rico, do sonho.

 Os pensadores neoplatônicos do Renascimento identificaram, de fato, a alma imaginal com a figura grega da divindade marinha Proteu, que podia tomar a forma de todas as coisas, homem, besta ou monstro. Contudo, ele só assumia a própria forma — diz-nos a lenda — e dava uma bênção, se fosse apanhado e preso. Da mesma forma, a anima (“alma” em latim) é mostrada com frequência nos velhos contos de fada como uma ondina, ou espírito das águas, que só retoma sua verdadeira forma se capturada e presa.

Visualizemos isto: em sua próxima aventura como herói, você prende o mágico Proteu (nossa metáfora neoplatônica para a alma), mas se o prender com muita força, pode não conseguir ver nunca as suas transformações lendárias e espetaculares.

Relaxe um pouco a pressão para fazer uma espécie de “viagem de mistério mágica” (e aumente a pressão para segurá-lo, quando ele ameaçar arrastar você totalmente, como nas lendas, nas costas de um dragão ou de um tigre). Com uma combinação de controle mental e permissividade mental, a imaginação mítica é levada a revelar seu funcionamento interno. É essa a essência do que Jung chamou de função transcendente, a qual delineei em The Shaman’s Doorway, como o mais elevado estágio (o quinto) de engajamento místico.

Anos depois, mas ainda na mesma tradição, Yeats disse:

Acredito que as artes estão na iminência de tomar sobre seus ombros o peso que caiu dos ombros dos sacerdotes, e levar-nos de volta à nossa viagem, enchendo nosso pensamento com as essências das coisas, e não com as coisas. Devemos, mais uma vez, colocar a destilação da alquimia em lugar das análises da química, e de outras ciências; e há pessoas que estão buscando o alambique perfeito, para que nenhuma gota de prata ou ouro venha a escapar.’11

Campbell disse que o artista criador de hoje herdou (e tornou ainda mais colorido) o manto do sacerdote. A arte, a literatura e
a cinematografia de que Campbell falava eram as mesmas que
Joyce fez Steven Dedalus descobrir: a visão impregnada de mito, a suspensão estética que leva a mente a uma nova compreensão da sua própria profundidade.’2

Em seu livro penetrante e sintetizador, Imaginal Body, Avens fala da colorida panóplia que a psicologia do arquétipo foi buscar nas imagens da alma:

 desde a psyche (literalmente, “borboleta”) dos gregos até Jung e a cauda pavonis (a “cauda do pavão”) dos alquimistas, e os simbolos multipetalados, a rosa (Ocidente) e o lótus (Oriente). Talvez a representação mais translúcida da alma (Avens atribui a Owen Barfield a imagem) seja o arco-íris:

Quando tentamos compreender um sonho, estamos fazendo idéias sobre imagens. E quando sonhamos, vemos as imagens carregadas de nossas idéias, como as associações sempre revelam. Será que a vida — e o crescimento — essencial da alma se encontram em nossa capacidade de auto-refletir: idéia/imagem/ idéia?

 (Dou exemplos mais detalhados de como isso funciona adiante.) Identificamos, certamente, a auto-reflexão com um nível mais elevado de consciência. A capacidade de ver dentro de nós mesmos e rir do que encontramos ali parece-nos atraente.

A visão através, como o humor, resiste a todas as conclusões fixas e prévias, a toda rigidez e opacidade de pensamento, e estimula o que é simbólico ou analógico, e transparente.

Toda vez que adotamos uma nova idéia ou um novo sistema de idéias, começamos a ver as coisas de novas maneiras, como se as idéias fossem olhos. Depois de algumas horas de estudo do sistema popular Análise Transacional, por exemplo, podemos passar a ver nosso comportamento, ou o comportamento dos outros, como variações sobre o tema de três personagens constantes: pai, filho e adulto;

 e a percepção nos mostrará, na verdade, coisas de cuja existência sabíamos. Mais miticamente (e de modo mais colorido), poderíamos identificar a sombra tenebrosa que paira atrás de nós; aquela coisa semelhante a uni espírito, a anima; e a máscara, a persona. É da natureza de qualquer forma de mito, presente na mente ou atuando sob a consciência, formar nossa experiência dentro do seu molde.

A imaginação é a estrela no homem...O segredo é ver através da imaginação.

Há um  intencional duplo sentido dessa frase, porque seu tema é tanto o USO da imaginação para ver, como ver através de suas imagens. Há indícios de que, nas fases evolucionárias iniciais de desenvolvimento da vida mental, a imaginação e a percepção eram uma mesma faculdade.

 Percebemos o mundo através de um sistema de imagens interiores nitidamente desenvolvido no decorrer dos anos, para imitar a realidade de certas maneiras. Não obstante, nossa percepção nunca está livre da imaginação (apercepção, ou a hipótese projetiva em psicologia).

IMAGINAÇÃO E VISÃO

Podemos separar a imaginação da percepção colocando uma pessoa numa câmara de privação sensorial, onde não recebe nenhum insumo do mundo exterior. Depois de algum tempo, a imaginação começa a descontrolar-se, criando alucinações (percepções desligadas da realidade exterior e delírios (idéias pertencentes a um sistema de crenças desligado da realidade exterior).2

 Não será talvez a nossa gabada “orientação para a realidade” simplesmente a imaginação que se atrelou aos acontecimentos externos, e deles se vale? A imaginação é uma faculdade que imita o mundo, de modo que possamos imaginar cores, formas, pessoas, lugares e fatos.

 Outras modalidades de sentidos pertencem também à imaginação: podemos ouvir música mental, por vezes de um tipo que não conseguimos afastar; vozes e conversas reconstituídas; e experimentar gostos, odores mentais, bem como a textura de um objeto que tenhamos tocado.

A imaginação pode imitar a vida tal como a conhecemos, ou pode preparar-nos para acontecimentos prováveis que ainda não se desenrolaram. Todas essas funções parecem razoáveis e necessárias à nossa existência. Mas há também o lado mais sombrio e descontrolado da imaginação; somos capazes de imaginar coisas que nunca vimos nem ouvimos na realidade externa. As mitologias estão cheias de animais míticos que nunca caminharam pela Terra, e os seres humanos mentem e enlouquecem, em grande parte por serem capazes de imaginação criativa.3

A mente, dizem os místicos orientais, é uma boa serva, mas um mau amo. O mesmo se aplica à imaginação mítica, porque ela não só nos permite modelar o mundo de maneira exata, como também fabricar fantasiosamente, e imaginar descontroladamente, coisas que não podem ou não devem nunca ocorrer.

 Assim, sofremos com frequência ao ver que nossos planos cuidadosamente imaginados se frustraram, ou que “interpretamos mal”, grosseiramente, a realidade — no mito, isso é por vezes representado por um conselheiro mentiroso ou um adivinho corrupto.

 Podemos, nessas ocasiões descobrir que a imaginação reagia na verdade à dinâmica interior da personalidade, e não a uma aproximação) do mundo exterior. A psicologia torna-se confusa em nossas percepções.

Nossa maravilhosa faculdade de criar mundos, portanto, pode agir como um gerador de facsimiles da realidade ou (de acordo com suas leis internas) um gerador de delírios. Como a onisciência, a imaginação tem liberdade de “conhecer” ou de modelar-se sobre qualquer coisa no universo.

 Mas, ao contrário da onisciência divina, a imaginação humana nunca sabe até que ponto o modelo que cria é exato. Nossa visão humana parece estar envolvida numa “nuvem de desconhecimento”, Precisamos, portanto, aprender a nova arte da visão”. Stephen Larsen

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