domingo, 22 de janeiro de 2012

A alquimia e Redenção de Deus.

                                                            
                                                                

A alquimia e  Redenção de Deus.

Edinger Edward
Martinho Lutero exprime essa mesma idéia:
Deus opera por meio de opostos, de modo que um homem se sente perdido precisamente no momento em que está prestes a alcançar a salvação. Quando Deus está prestes a perdoar um homem, amaldiçoa-o. Aquele a quem Deus quer tornar vivo primeiro deve morrer. O favor dc Deus é de tal forma comunicado através da ira que a graça parece mais distante precisamente quando está à mão.

 E preciso que antes o homem se lamente, dizendo que não há cura para si. E preciso que o homem se veja consumido pelo horror. Esse é o sofrimento do purgatório... Em meio a esses distúrbios, a salvação tem início. Quando um homem sente que está profundamente perdido, surge a luz.

4. A RECONSTRUÇÃO DO EIXO EGO-SI-MESMO

Há um quadro clínico típico, muito comum na prática psicoterapêutica, que pode ser denominado neurose da alienação Um indivíduo portador dessa neurose tem muitas dúvidas com relação ao seu direito de existir. Apresenta-se com um profundo sentimento de falta de valor, com todos os sintomas daquilo que costumamos designar por complexo de inferioridade.

 O indivíduo supõe, inconsciente e automaticamente, que tudo que vem dele mesmo — seus desejos, necessidades e interesses mais profundos — deve estar errado ou, de alguma forma, deve ser inaceitável. Diante dessa atitude, a energia psíquica é represada e deverá emergir sob formas encobertas, inconscientes ou destrutivas, tais como sintomas psicossomáticos, ataques de ansiedade ou de afeto primitivo, depressão, impulsos suicidas, alcoolismo, etc.

 Fundamentalmente, um paciente desses enfrenta o problema de saber se é ou não perdoado diante de Deus. Temos aqui a base psicológica da questão teológica do perdão: a fé ou as obras nos asseguram o perdão? — algo que torna ínfima a diferença entre os pontos de vista introvertido e extrovertido.

 A pessoa alienada sente-se profundamente não perdoada e dificilmente tem condições de agir em favor do seu melhor interesse. Ao mesmo tempo, ela perde a sensação de significado. A vida torna-se vazia de conteúdo psíquico.

Para haver a ruptura do estado alienado, é necessário restabelecer algum contato entre o ego e o Si - mesmo. Se isso for possível, um mundo completamente novo vai se abrir para a pessoa. Apresento a seguir uma descrição de uma experiência desse tipo, retirada de um caso narrado pelo Dr. Rollo May. A paciente era uma mulher dc vinte e oito anos, filha ilegítima, que havia sofrido severamente com o que eu denominaria neurose da alienação. Ela conta suas experiências nas seguintes palavras:

Lembro-me de que estava caminhando, naquele dia, pelas passagens elevadas de uma área de favela, sentindo o peso do pensamento “Sou uma filha ilegítima”. Recordo-me do suor gotejando enquanto sentia a angústia envolvida na tentativa de aceitar esse fato. E então entendi o que deveria ser, para outros, aceitar este outro fato.

 “Sou um Negro em meio a brancos privilegiados”, ou “Sou um cego em meio a pessoas que vêem”. Mais tarde, à noite, levantei-me e a coisa me ocorreu da seguinte forma:

“Aceito o fato de ser filha ilegítima”, mas “Já não sou criança”. Logo, “Sou ilegítima”. Mas ainda não é isso: “Nasci ilegítima (mente)”. E o que sobra então? O que sobra é “Eu sou”. Esse ato de contato e de aceitação com relação ao “Eu sou”, uma vez acontecido, deu-me (o que sinto ter sido pela primeira vez) a experiência: “Já que eu sou, tenho o direito de ser”.

Com que se parece essa experiência? Trata-se de um sentimento... essencial — que se assemelha ao recebimento da escritura da casa própria. É a experiência do próprio nascer, que não traz consigo o interesse de saber se a vida vai ser de um íon ou de uma simples onda. Parece com o dia em que eu, bem criancinha, alcancei o miolo de um pêssego e quebrei-lhe o caroço, sem saber o que iria encontrar; depois, senti-me como c presenciasse algo maravilhoso ao descobrir a semente interna, boa dc comer, com sua doçura áspera...

É como um barco parado no porto no qual é dada uma âncora para que ele, feito de coisas da terra, possa recuperar o contato com a terra, com o solo de onde sua madeira  pode levantar âncoras para navegar, mas sempre pode, algumas vezes lançar as âncoras para defender-se da tempestade ou para descansar um pouco...

E como se eu tivesse ido para o meu próprio Jardim do Éden, onde estou além do bem e do mal e de todos os demais conceitos humanos... É como o globo terrestre antes de as montanhas, oceanos e continentes serem desenhados no seu interior. E como uma criança que estuda gramática ao encontrar o sujeito de uma oração — sendo o sujeito, nesse caso, nossa própria vida. É deixar de ser uma teoria com relação ao próprio eu...

May chama isso de experiência do “Eu sou”, o que certamente a descreve bem. Podemos entendê-la, igualmente, como a reconstituição do eixo ego — Si-mesmo que deveria ter acontecido no contexto de uma forte transferência.

O sonho apresentado a seguir também ilustra o início da reparação de um eixo ego—Si-mesmo danificado. A paciente, uma jovem, sonhou:

Fui banida para as vastidões frias e vazias da Sibéria e estou caminhando sem destino. Então aparece um grupo de soldados a cavalo. Eles me atiram ao chão e começam a me violentar, um por um. Isso acontece quatro vezes. Sinto-me despedaçada e paralisada de frio. Então se aproxima o quinto soldado.

 Espero receber dele o mesmo tratamento mas, para minha surpresa, vejo em seus olhos compaixão e compreensão humana. Ao invés de me violentar, ele me envolve gentilmente com um cobertor e me leva para uma cabana próxima. Nela, sou colocada perto do fogo e alimentada com sopa quente. Sei que esse homem vai me curar.

Esse sonho ocorreu no início da transferência. A paciente sofrera, quando criança, de um severo grau de rejeição por parte dos pais. Seu pai, em especial, a havia ignorado completamente após divorciar-se da mãe. Esse foi um golpe terrível para sua auto-estima e a deixou alienada dos valores veiculados pelo pai e, em última análise, de uma porção do Si-mesmo.

 O sonho descreve vivamente seu sentimento de alienação ou de banimento, assim como sua experiência recém-iniciada de restauração: o eixo ego—Si-mesmo começava a ser reparado.

Isso acontece com a consciência emergente dc fortes sentimentos de transferência. Essas experiências são, com efeito, encontradas regularmente em psicoterapia e são tratadas de forma mais ou menos bem-sucedida através de bons sentimentos humanos e dc teorias estabelecidas referentes a transferência.

Todavia, acredito que a percepção de que um profundo processo nuclear — que envolve a reparação do eixo ego-Si-mesmo — está em andamento e dá uma outra dimensão à compreensão do fenômeno da transferência. Ademais, nesse caso tornamo-nos capazes de compreender a experiência terapêutica no contexto mais amplo da necessidade humana universal de manter uma relação com a fonte transpessoal do ser.

Mesmo para o homem “normal” a alienação constitui uma experiência necessária para que o desenvolvimento psicológico tenha continuidade, pois a identidade ego—Si-mesmo é tão universal quanto o pecado original. Na realidade, são idênticos. Carlyle o disse de forma brilhante. Ele afirma que a felicidade é inversamente proporcional ao grau de nossas expectativas, isto é, àquilo que pensamos merecer. A felicidade é igual àquilo de que dispomos dividido por aquilo que esperamos obter.

Ele escreve:
Por meio dc certas avaliações e medidas, estabelecidas por nós mesmos, chegamos a alguma espécie de quinhão terrestre médio; que esse quinhão nos pertence por direito incontestável e pela própria natureza. Esse quinhão é um simples pagamento de salários, pelos nossos méritos; não requer elogios nem queixas. Apenas os superávits eventuais são considerados por nós como Felicidade; qualquer déficit é considerado Miséria.

 Mas considerando que nós mesmos fazemos a avaliação dos nossos méritos e que há em cada um de nós um fundo de pretensão, será, acaso, de admirar que a balança penda com freqüência para o lado errado... Digo-te, Cabeça-Dura, que tudo isso vem da tua Vaidade; das fantasias com que consideras quais sejam teus méritos. Imagina que mereces ser enforcado (o que é bem provável), e ficarás feliz por ser apenas fuzilado.

... a Fração da Vida pode ter seu valor aumentado não tanto pelo aumento do Numerador como pela redução do Denominador. Ademais, a não ser que minha Álgebra me engane, a Unidade dividida por Zero dará como resultado o Infinito. Faze tua reivindicação de salários igual a zero e terás o mundo aos teus pés. Bem disse o Mais Sábio de nossa época ao escrever: “Apenas com a Renúncia (Entsagen) é possível considerar a Vida propriamente dita iniciada”.

“Encaro essa vida como o percurso de uma essência real; a alma apenas deixa sua corte para ver o país. Os céus têm em si uma representação da terra e se a alma se tivesse contentado com idéias, não teria viajado para além do mapa. Mas padrões excelentes recomendam seus gestos ... mas enquanto lhes explora a simetria, ela a forma. Assim, sua descendêtwia reproduz o original. Deus, no amor à Sua própria beleza, forma um espelho, para vê-la refletida”.
- THOMAS VAUGHN*
Emerson exprime essa mesma idéia, a saber, de que há uma lei no fundo de tudo o que é aparentemente casual:
O segredo do mundo é a ligação existente entre a pessoa e o evento ... o espírito traz em si o evento que lhe vai sobrevir ... o evento é a impressão de sua forma.
Os eventos nascem da mesma fonte de que nascem as pessoas.
Cada criatura gera de si mesma sua própria condição e esfera, assim como a lesma faz sua tênue casa na folha da pereira.
Um homem verá seu caráter manifestar-se nos eventos que parecem encontrá-lo, mas que surgem dele e o acompanham.
não há acasos ... A lei rege tudo que existe...

Nos estágios iniciais do desenvolvimento psicológico, Deu está oculto — no esconderijo mais engenhoso que há — na identificação que temos com nós mesmos, com nosso próprio ego. Essa idéia do Deus oculto corresponde ao mito gnóstico da Sophia, um personificação da Sabedoria de Deus.

No processo da criação, a Sophia - sabedoria divina, tornou-se matéria; e então, no curso dessa transformação, perdeu-se e ficou aprisionada à matéria — tomando se, assim, o Deus oculto, que precisa de libertação e redenção.

Essa idéia do espírito divino aprisionado na matéria, oculto na escuridão da mente, representa o Si-mesmo oculto em sua identificação com ego. A matéria, que esconde a Sophia, simboliza a realidade concreta temporal e terrena do ego individual. Se Deus está aprisionado n matéria, na personalidade imatura, a tarefa de desenvolvimento psicológico é nada menos que a redenção de Deus através da consciência humana.

A redenção de Deus configurou-se como um tema básico da alquimia. A obra alquímica foi um trabalho de redenção. Todo (processo de transmutação constituía uma tentativa de libertar e redimir um valor supremo de sua prisão à matéria básica. A matéria básica era a prima matéria, aquilo com que se começava, que corresponde às imaturidades infladas de nossa psique. Essa matéria deveria ser transformada na pedra filosofal, uma essência divina.

 A prima matéria é nossa identidade ego—Si-mesmo, o resíduo da inflação original. Submeter esse material ao processo alquímico significa aplicar o esforço e a atenção conscientes à tarefa de refinar e separar essa mistura composta, com o fito de libertar o Si-mesmo, ou psique  arquetípica, de sua contaminação com o ego.

Há um contraste entre a atitude cristã tradicional — cujo tema a redenção passiva do homem através da fé depositada em Cristo — atitude alquímica — um esforço ativo do homem para redimir
Deus. Sobre esse contraste, escreve Jung:
(Na atitude Cristã) o homem atribui a si mesmo a necessidade de redenção e deixa o trabalho de redenção, o athlon real, ou opus, para a figura divina autônoma; .. (na atitude alquímica) o homem se encarrega de realizar a opus redentora, e atribui o estado de sofrimento e consequente necessidade de redenção, à anima mundi aprisionada na matéria.

Pára o homem moderno, um encontro consciente com a psique arquetípica autônoma equivale à descoberta de Deus Depois de passar por essa experiência, ele já não está sozinho em sua psique, e toda sua visão do mundo é alterada. Ele é libertado, em grande parte, das projeções do Si-mesmo em alvos e objetivos seculares. É libertado da tendência a identificar-se com qualquer facção que possa levá-lo a viver o conflito dos opostos no mundo externo. Uma pessoa que passou por isso está conscientemente comprometida com o processo de individuação.

O I Ching descreve o efeito que uma pessoa individuada pode obter:

Na natureza também se observa um rigor sagrado e grave que se manifesta na regularidade com que se desenrolam todos os fenômenos. A contemplação do sentido divino subjacente à ocorrência de todos os fenômenos do universo dá, ao homem destinado a liderar os outros, meios para produzir efeitos semelhantes.

 Para isso é necessário a concentração interior que a contemplação religiosa desenvolve nos grandes homens, dotados de fé poderosa. Permite-lhes apreender as misteriosas e divinas leis da vida e, através da mais profunda concentração, chegar a exprimir essas leis em si próprios. De sua contemplação emana uni poder espiritual oculto, que influencia e domina os homens, sem que eles estejam conscientes de como isso ocorre”.
Pesquisado por dharma dhannya

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