quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

3. O Louco interior no Taro




3. O Louco interior  no Taro  
http://dharmadhannyael.blogspot.com/

Livro Jung e o Taro.Sallie Nichols.
Se o homem persistisse em sua loucura, tornar-se-ia sábio.
William Blake

O LOUCO é um andarilho, enérgico, ubíquo e imortal. É o mais poderoso de todos os Trunfos do Taro. Como não tem número fixo, está livre para viajar à vontade, perturbando, não raro, a ordem estabelecida com as suas travessuras. Como vimos, o seu vigor o impulsionou através dos séculos, onde ele sobrevive em nossas modernas cartas de jogar como o Coringa. Aqui ainda se diverte confundindo o Estabelecimento. No pôquer fica louco, capturando o rei e toda a sua corte.

 Em outros jogos de cartas surge quando menos se espera, criando deliberadamente o que decidimos denominar um erro de carteio.

Às vezes, quando perdemos uma carta, pedimos ao Coringa que a substitua, função que se adapta muito bem à sua coloração variegada e ao seu amor do arremedo. Na maior parte do tempo, entretanto, ele não serve a nenhum propósito manifesto. 

Talvez o conservemos no baralho como uma espécie de mascote, como as cortes de antanho conservavam o seu bobo. Na Grécia, acreditava-se que o fato de ter um bobo em casa afastava o mau-olhado. A retenção do Coringa em nosso baralho servirá, porventura, a uma função similar, de vez que as cartas de jogar, segundo se afirma, são "as figuras do diabo".

O Coringa liga dois mundos - o mundo contemporâneo de todos os dias, onde quase todos nós vivemos a maior parte do tempo, e a terra não-verbal da imaginação habitada pelos personagens do Taro, que visitamos de quando em quando. 

Como Puck, o bobo do Rei Oberon, o nosso Coringa move-se livremente entre esses mundos: e, como Puck, às vezes, os confunde um pouco. A despeito dos seus modos enganadores, parece importante conservar o Coringa no baralho moderno para que ele possa ligar os modernos "jogos que a gente joga" ao mundo arquetípico dos antepassados. Ele, sem dúvida, observa e relata o que fazemos a Alguém Lá em Cima.

Agir como espião do rei, com efeito, era uma função importante do bobo da corte. Personagem privilegiado, o louco podia misturar-se facilmente a qualquer grupo que estivesse metendo o nariz onde não era chamado ou mexericando e avaliando a situação política.

 Existe um dito italiano, ainda corrente, que aconselha: "Ser como o Louco em Tarocchi" (Taro), o que significa ser bem recebido em toda a parte.

O bobo shakespeareano podia agir como o alter ego do rei de outras maneiras importantes também, notadamente no Rei Lear, onde parece simbolizar uma sabedoria real não atingida pelo próprio Lear até o fim da peça. De acordo com James Kirsh,(1) o bobo de Lear personifica a essência central da psique, a força condutora que Jung denominou o eu. Na série do Taro, como veremos, o Louco representa, às vezes, um papel semelhante.

 E como o seu equivalente shakespeariano, esse Coringa se agita - por toda a extensão do palco - aparecendo súbita e inesperadamente ora aqui, ora ali, e depois desaparecendo antes que possamos agarrá-lo. Gosta de estar onde está a ação e, quando não há nenhuma, cria-a.

Os retratos de bobos da corte apresentam-nos freqüentemente acompanhados de cachorros. Como o cachorro do rei, acreditava-se que o louco pertencesse ao soberano, e ambos acolitavam o seu senhor a toda a parte. Como se pode imaginar, a relação entre os dois "animais" há de ter sido íntima, mais ainda que a relação entre o senhor e o animal, pois eles eram, de certa forma, irmãos.

Em muitos baralhos de Taro, o Louco aparece com um cachorrinho que o está mordiscando, como se quisesse comunicar-lhe alguma coisa. No Taro de Marselha (Fig. 4) só podemos fazer conjecturas sobre a natureza da mensagem do cão. Na versão de Waite (Fig. 6) o animal parece estar avisando o companheiro de um perigo iminente. De qualquer maneira, o Louco se acha em tão estreito contato com o seu lado instintivo que não precisa olhar para onde vai no sentido literal: sua natureza animal guia-lhe os passos.

Em algumas cartas do Taro o Louco é retratado como se tivesse os olhos vendados, o que lhe enfatiza ainda mais a capacidade de agir antes por introvisão do que pela visão, utilizando a sabedoria intuitiva em lugar da lógica convencional.

À semelhança do temerário terceiro irmão dos contos de fadas, que se precipita onde os anjos receiam passar e, ao fazê-lo, conquista a mão da princesa e o seu reino, a espontânea abordagem da vida levada a efeito pelo Louco combina sabedoria, sandice e desatino. Quando ele mistura esses ingredientes nas proporções exatas, os resultados são milagrosos, mas quando a mistura coalha, tudo pode acabar numa confusão pegajosa. Nessas ocasiões, o Louco parece totalmente sandeu, o que (sendo louco) ele tem o bom senso de não levar a sério. É amiúde retratado como Bottom, usando orelhas de burro, porque sabe que o mais alto conhecimento é admitir a ignorância -condição necessária de todo o saber.

1.James Kirsh, Shakespeare s Royal Selfy Nova Iorque, C. G. Jung Foundation for Analytical Psychology, Inc., 1966. O aspecto energizante do Louco é bem descrito na An Encyclopedia Outline of Masonic, Qabalistic and Rosicrucian Symbolic Philosophy, de Manley Hall, The Philosophical Research Society, 1968, Estampa CXXIX, onde o Louco, "em tamanho natural”, passeia pela página trazendo pregado na roupa o resto dos Trunfos do Tarô, que parecem cartas pequenas.

O nosso louco interior nos empurra para a vida, onde a mente reflexiva pode ser super cautelosa. O que se afigura um precipício visto de longe pode revelar-se um simples bueirozinho quando enfocado com a volúpia do Louco. Sua energia varre tudo o que estiver à frente, levando outras criaturas de roldão como folhas impelidas por um vento forte. Sem a energia do Louco todos seríamos meras cartas de jogar.
Em seu livro The Greater Trumps, Charles Williams explora uma idéia semelhante. Aqui o Louco é o personagem central dos Trunfos do Taro. Vê-lo dançar é sondar o minério de toda a criação, pois tem uma essência oni-abrangente e múltiplos paradoxos. 

Caminha para a frente, mas olha para trás, ligando assim a sabedoria do futuro à inocência da infância. Embora inconsciente e não-dirigida, sua energia parece ter um propósito próprio. Move-se fora do espaço e do tempo. Habitam-lhe o espírito os ventos da profecia e da poesia.

 Se bem vagabundeie sem morada fixa, subsiste intacto através dos séculos. Sua roupa multicor faz girar a roda de um arco-íris e nos oferece vislumbres da eternidade. Assim como os padrões de um caleidoscópio aparecem e desaparecem, assim o Louco entra e sai do nosso mundo, irrompendo entre os Trunfos do Taro de tempos a tempos, como adiante veremos.


Fig. 5 Baralho Suíço Fig. 6 Baralho Waite Fig. 7 Baralho Aquariano
Sua natureza multifacetada é expressa pelo emblema, réplica da própria cabeça embarretada, com a qual, não raro, ele é visto entretido em ardorosa conversação, idéia essa embelezada de muitas maneiras sutis. 

Em alguns baralhos, um Louco sério segura um espelho cuja imagem sorri ou mostra a língua. Num baralho austríaco do século XV um coringa feminino segura um espelho para nós! A imagem no espelho, figura masculina de torvo aspecto, traz a seguinte inscrição: "Coringa feminino olhando para o seu rosto de idiota risonho ao espelho."[William Willefbrd, The Fool and His Scepter, Evanston, Illinois, Northwestern University Press, 1969, Estampa 12, pág. 39].

Muitas ambigüidades do Louco arquetípico são ilustradas num baralho francês de origem desconhecida, que me foi dado há cerca de trinta anos, e que ainda não vi estampado em nenhum outro lugar (Fig. 8). Nesta carta, o Louco é pintado como um velho mendigo, com barba branca e olhos vendados. Na mão direita segura um emblema (seu alter ego) de tal maneira que o emblema lhe precede e guia os passos trôpegos. 

Talvez sacuda uns guizos a fim de chamar a atenção do Louco para o crocodilo que ali está de atalaia. O cãozinho que late nos calcanhares do amo faz vibrar num aviso de perigo iminente. Como indicação adicional de que está afinado com o seu lado instintivo, o velho mendigo carrega um violino debaixo do braço esquerdo, cuja música o acompanhará quando ele cantar por um jantar na aldeia mais próxima e ajudará a conservar-lhe a alma em harmonia e em paz ao longo da estrada solitária.

Em acentuado contraste com o jovem Louco de Waite, que vimos na iminência de partir para as suas aventuras, este velho andarilho está concluindo a longa viagem de regresso à casa. Não é cego, mas usa uma venda nos olhos, o que indica disposição voluntária para renunciar aos estímulos das cenas e eventos exteriores, de modo que possa contemplar a vida com o olho interior. Também superou a necessidade de companhia humana.

 Agora se dedica ao diálogo com o seu eu intuitivo, personificado pelo emblema, e à muda companhia do cãozinho. A antiqüíssima tradição do Louco arquetípico, triste e sábio, mantida viva no drama e na arte através dos séculos, é hoje dramatizada no palhaço chapliniano e pelos bobos tristes cujo olhar para o mundo encontra o nosso nas telas de Picasso, Rouault e Buffet. O Louco triste é parente próximo do arquetípico Velho Sábio, personagem que veremos personificado no Eremita do Taro número nove.

O lugar do Coringa na seqüência dos Trunfos é apropriadamente quixotesca. Em alguns baralhos, como número zero, dirige as outras cartas. Em outros, confere-se-lhe o número vinte e dois, de modo que ele cerra a fila da parada dos Trunfos. Em nossa opinião, a questão de saber se o Louco é o primeiro ou o último não tem a menor importância: ele não é uma coisa nem outra, e é as duas ao mesmo tempo. Pois, sendo uma criatura em perpétuo movimento, dança através das cartas todos os dias, ligando o fim ao princípio – interminavelmente.

Fig. 8 O Louco (Antigo Taro Francês)
Como seria de esperar, os pormenores das roupas do Louco combinam muitos pares de opostos no seu desenho. O barrete, conquanto tenha sido originalmente concebido como sátira ao capuz do frade, traz uma séria conexão com o espírito. Sua campainha, que ecoa o momento mais solene da missa, chama o homem de volta à fé infantil dos loucos, fazendo soar a exortação de São Paulo: "Sejamos loucos por amor de Cristo."

O talismã do Coringa, um barrete de bufão com campainhas, combina de forma semelhante uma verdade séria com adornos alegres. O galo vaticina a aurora de uma nova percepção, um redespertar para antigas verdades. Dir-se-á que esse milagre não será representado nos céus estrelados lá em cima, porém mais uma vez na sujeira e no rebuliço do terreiro. 

Em lugar de pombas iridescentes e anjos com trombetas de ouro, o Louco nos oferece o cocoricar de um galo, pássaro brilhante e fértil com ligações no Getsêmane. À luz desses comentários, parece duplamente apropriado que os albigenses, prováveis originadores dos Trunfos, houvessem decidido disfarçar-se em loucos. Sentindo-se traídos pela corrupção da Igreja, também proclamaram um novo espírito: e devem ter-se divertido enganando as autoridades, transmitindo suas idéias revolucionárias com a ajuda de um maço de cartas de jogar.

A roupa colorida do Louco é o símbolo por excelência da união de muitas espécies de opostos. Suas cores variegadas e o seu desenho fortuito parecem indicar um espírito discordante: no entanto, dentro daquele caos aparente, discerne-se um modelo. Dessa maneira, o Louco se apresenta como ponte entre o mundo caótico do inconsciente e o mundo ordenado da consciência. 

Dessa maneira, ele se relaciona com o arquétipo do Embusteiro, como será discutido mais tarde.
A palavra "fool" (Louco, em inglês) deriva do latim follis, que significa "par de foles, cornamusa". Um Taro austríaco mostra o Louco com um capuz de monge e campainhas, tocando uma gaita de foles. [E. Tietze-Conrat, Dwarfs and Jesters in Art, Londres, The Phaidon Press, 1957, Estampa 65,pág. 59] Hoje, os palhaços de circo carregam, às vezes, uma série de foles ou batem na cabeça uns dos outros com bexigas vazias, conservando assim uma conexão com a loucura borrascosa das suas origens. Os foles fornecem o oxigênio necessário à combustão de maneira muito semelhante àquela com que o Louco fornece o espírito, ou ímpeto, para a ação. Ele "nos inflama".

 O Louco do Taro, ocasionalmente, usa uma pena no barrete, enfatizando ainda mais a sua ligação com o espírito celeste. Mas o Coringa também pode ser um fole de cornamusa, cheio de ar quente, como o sugere a palavra "bufão" (do latim bufo, que significa "sapo", e do italiano buffare, bufar).
Em se tratando do Louco les extremes se touchent sempre. William Willeford chama-nos a atenção para o fato de que o bobo tem sido tradicionalmente ligado ao falo, tanto no sentido da devassidão quanto no da fertilidade.[Willeford, op. Cit. pág. 11]. 

O falo era usado pelos equivalentes gregos e romanos do Louco e pelo Arlecchino da Renascença. Um exemplo mais contemporâneo desse tema é ilustrado por Punch - a figura-título da revista humorística britânica - que tem um falo colossal. O bobo da corte européia carregava, não raro, uma bexiga em forma de falo. O seu emblema com as duas campainhas pendentes, obviamente, é um símbolo de fertilidade, o seu "instrumento". Ao mesmo tempo esse brinquedo constitui também o cetro do Louco, que o liga diretamente ao rei como um alter ego.
Às vezes o Louco, retratado mais claramente como o equivalente do rei, apresenta-se com uma coroa. Simbolicamente, a coroa é um halo dourado, aberto em cima para receber a iluminação do alto, de modo que assim o rei como o louco são vistos recebendo a inspiração divina. E assim como o rei governava por direito divino, assim o seu equivalente tinha o direito igualmente divino de criticá-lo e oferecer-lhe sugestões desafiadoras.

Fig. 9 Rei e Bufão
Retratados aqui (Fig. 9) vemos um rei moderno e o seu bufão. De feições pasmosamente semelhantes, esses dois personagens usam coroas idênticas de um gênero muito especial. São barretes quadrados, pretos e sólidos na parte superior, de tal sorte que produzem o efeito de telhados em miniatura, que protegem os usuários não só da iluminação do céu mas também das suas lágrimas. Muitos acham tais coroas imprestáveis hoje em dia, e os que as usam têm sido chamados de "quadrados". Essas coberturas de cabeça parecem fazer que todos os seus portadores sejam parecidos uns com os outros e se comportem de maneira idêntica. Como mostra a ilustração, às vezes é difícil dizer qual dos dois é o rei e qual dos dois é o louco. Era função do bobo do rei recordar-lhe as suas loucuras, a mortalidade de todos os homens e ajudá-lo a guardar-se do pecado da arrogância e do orgulho jactancioso. Um bobo quase idêntico ao rei não pode exercer adequadamente essas funções; nem pode afastar o "mau-olhado". E, como o demonstrou a "tragédia de Watergate" do início dos anos setenta, uma corte composta inteiramente de pessoas que sempre concordam com o rei está destinada à ruína.

Porque o Louco encerra os pólos opostos de energia, é impossível segurá-lo. No momento em que cuidamos haver-lhe captado a essência, ele se transforma ladinamente no seu oposto e tripudia, escarnindo, nas nossas costas. Todavia, é justamente a ambivalência e a ambigüidade que o tornam tão criativo. Referindo-se a esse aspecto do Louco, disse Charles William: "(Ele) é chamado de Louco porque a humanidade julga tratar-se de loucura até conhecê-la. É soberano ou não é nada e, se não for nada, o homem nasceu morto."[Williams, op. Cit. Pág. 227]. O Louco abarca todas as possibilidades.

Parece significativo que hoje os jovens de coração de todas as idades usem com freqüência uma mistura de cores e andem com andrajos e remendos, emblemas e campainhas. Muitos também se tornam andantes, viajando por toda a parte com os seus bens terrenos atirados com displicência às costas. Em seu livro Alan McGlashan [Alan McGlashan, The Savage and Beautiful Country, Boston, Houghton Mifflin Company] vê nesses fenômenos tentativas inconscientes de retroceder até o solo criativo do Éden a fim de reativar o poder sem limites da primeira criação. 

Inúmeros jovens contemporâneos largam instituições reconhecidas de instrução superior para procurar a sabedoria mais profundamente enraizada no solo do seu ser essencial. Talvez as cores psicodélicas dos anos sessenta e setenta pressagiassem a aurora de uma nova consciência para toda a espécie humana.

O nome do Louco em francês, Le Fou, cognato da palavra "fogo", repete sua conexão com a luz e a energia. Como o próprio Bufão poderia dizer: "Eu sou luz (light) e viajo leve (light)." [Eles adoram fazer trocadilhos.] Símbolo do fogo prometéico, o Louco arquetípico personifica o poder transformador que criou a civilização - e que também pode destruí-la. 

O seu potencial para a criação e a destruição, para a ordem e a anarquia, reflete-se no modo com que é apresentado no velho Taro de Marselha, onde o retratam seguindo à vontade, liberto de todos os estorvos da sociedade, sem ter sequer um caminho para guiá-lo; não obstante, enverga o traje convencional do bobo da corte, a indicar que ocupa um lugar aceito dentro da ordem reinante. Na corte, desempenha o papel singular de companheiro, confidente e crítico privilegiado do rei.

 À semelhança do malandrim navajo Coyote, confere-se ao louco um papel especial na ordem social. Sua presença serve às forças governantes de lembrete constante de que o impulso para a anarquia existe na natureza humana e precisa ser tomado em consideração.

A manutenção de bobos na corte e nas casas de famílias nobres começou em tempos remotos e continuou até o século XVII. Essa prática dramatiza o fato de que precisamos dar espaço ao fator renegado em nós mesmos e admiti-lo em nossa corte interior, o que significa psicologicamente que precisamos reconhecê-lo. É geralmente uma boa idéia colocar o nosso Louco bem diante de nós, onde possamos trazê-Io de olho. Excluído da consciência, ele pode pregar-nos peças que, embora "inocentes", são difíceis de apreciar. Aceito em nosso conselho interior, o Louco pode oferecer-nos idéias frescas e nova energia. Se quisermos ter o benefício da sua vitalidade criativa, precisamos aceitar-lhe o comportamento não-convencional. Sem as observações bruscas e os sábios epigramas do Louco, a nossa paisagem interna poderia converter-se num deserto estéril. Nessas condições, a crença de que "manter um louco na corte afasta o mau-olhado" não é uma superstição antiquada; representa uma verdade psicológica de duradouro valor.

Outra técnica utilizada em épocas anteriores para garantir a sociedade contra explosões inesperadas de impulsos destrutivos latentes consistia em pôr de parte certos períodos de permissividade universal, como a célebre Festa dos Loucos, quando todas as convenções eram temporariamente suspensas. 


Nessas ocasiões, a ordem natural das coisas virava de cabeça para baixo. Os rituais mais sagrados eram parodiados de maneira obscena; metiam-se a ridículo dignitários da Igreja e do Estado, e permitia-se a todos os pobres-diabos oprimidos que dessem vazão ao que eles haviam reprimido durante o ano inteiro em matéria de hostilidade, lascívia e rebelião.

Hoje em dia, o espírito dessas saturnais sobrevive de forma aguada em carnavais, no Mardi Gras, no Fastnachí e, em menor extensão, em ocasiões como a Véspera do Dia de Todos os Santos, a Véspera do Ano-Novo, o Dia 1- de Abril, circos, paradas, rodeios, festivais de rock e outros eventos em que prevalece o espírito dos dias feriados. A recente irrupção em nossa cultura da magia negra e o aumento do interesse pelas atividades de feiticeiros e bruxos indicam que precisamos abranger o irracional de maneiras mais aceitáveis.

Existem muitas possibilidades menos dramáticas de admitir o Louco em nossa vida. Uma delas é reconhecer livremente a nossa própria loucura, Toda a vez que formos capazes de fazê-lo numa situação de conflito, os resultados serão desarmantes. Não encontrando resistência, o antagonismo fica com a cara no chão, e o nosso adversário brandirá em vão o punho no ar. E o que é mais significativo, a energia que despendíamos antigamente defendendo a nossa própria estupidez é agora liberada para um emprego mais criativo.

 Toda a vez que um protagonista abre o coração e admite o Louco, a hostilidade quase sempre se dissipa em risos, e todos os participantes do conflito acabam meneando a cabeça em companhia de Puck diante da insensatez do homem mortal. De modo geral, o Louco é um bom personagem para consultar todas as vezes que descobrimos que os nossos planos mais bem arquitetados foram para o vinagre, deixando-nos desesperadamente desorientados. Nessas ocasiões, se prestarmos atenção, ouvi-lo-emos dizer com um encolher de ombros: "Quem não tem meta fixa nunca perde o caminho."

Como já dissemos, existem muitas versões do Taro. Diversos exemplos do Louco do Taro são aqui apresentados porque cada um dramatiza um lado importante da sua personalidade complexa. O primeiro deles, uma velha carta suíça (Fig. 5) mostra-o como o puer aeternus, moço de vigor imortal — com vários séculos de idade. O seu cetro sugere a flauta mágica de Papageno, que fazia seus inimigos dançar e assim dissipava-lhes a cólera. Trata-se, por certo, de uma bela maneira de evitar a desarmonia e a guerra, bastando para isso capturar a melodia.

A flauta sugere também aquele infame escroque, o Pied Piper. (Existe, com efeito, um baralho alemão que retrata o coringa especificamente como o Pied Piper seguido de um bando de ratos enfeitiçados.) De maneira semelhante, o Piper suíço enfeitiçador pode desviar-nos das maneiras convencionais de pensar e levar-nos de volta à terra da fantasia e da imaginação das crianças. Precisamos, porém, precatar-nos da sua mágica; se nos esquecermos de pagar o flautista, este Maroteiro do Taro poderá manter-nos prisioneiros no mundo instintivo, dançando como ratos indefesos ao som da sua melodia, enquanto não tivermos ajustado nossas contas com ele. 

Convém-nos manter um bom relacionamento com o nosso Louco. Assim, como ele, poderemos jornadear livremente de um lado para outro entre os mundos da fantasia etérea e da realidade terrena.
Um bom exemplo desse arranjo de trabalho entre o mundo adulto e o da eterna criança é simbolizado na história de Peter Pan, o famoso menino que, à semelhança do Pied Piper, atraía crianças para fora do Estabelecimento. Conquanto não usasse um barrete e campainhas de bobo, Peter sabia voar e gostava de cocoricar como galo. Como o Louco arquetípico, ele abarcava os opostos, pois tinha uma sombra escura, que mantinha sabiamente costurada em si mesmo para que ela não se perdesse nem fosse esquecida.

Quando Peter Pan raptou os filhos da Sra. Darling a fim de levá-los à Terra do Nunca-Nunca, ela ficou desolada, de modo que Peter fez um trato com o Estabelecimento: Wendy poderia viver em casa a maior parte do tempo, contanto que passasse, de vez em quando, pela Terra do Nunca-Nunca, a fim de ajudar a limpar a casa na primavera - Se dermos ao Louco as boas-vindas ao nosso mundo, ele talvez nos ensine a voar e nos ofereça salvo-conduto para viagens semelhantes ao seu mundo, contanto, naturalmente, que o ajudemos a arrumá-lo um pouco. Está visto que ele precisa do nosso intelecto ordenado na sua Terra do Nunca-Nunca tanto quanto nós precisamos da sua vitalidade e criatividade em nossa Terra do Sempre-Sempre.
O aspecto maroto do Louco é, com efeito, um aspecto maroto. Como observa Joseph Henderson, o Embusteiro é totalmente amoral. Não se submete a disciplina alguma e é inteiramente guiado por sua atitude experimental em relação à vida; sem embargo disso, da figura do Embusteiro evolui finalmente o Herói-Salvador. Um concomitante necessário dessa transformação é que o moço Embusteiro precisa sofrer um castigo pela sua insolente presunção. 

Daí, para citarmos Henderson, "o impulso do Embusteiro proporciona a mais vigorosa resistência à iniciação e é um dos mais duros problemas que a educação tem de resolver porque parece uma espécie de ilegalidade divinamente sancionada que promete tornar-se heróica".[Joseph L. Henderson, Thresholds of Initiation, Middletown, Connecticut, Wesleyan University Press, 1967, pág. 36]. É porventura em reconhecimento, e reconhecimento tardio do potencial heróico da juventude que a sociedade hoje tolera os trajes e o comportamento não-convencionais e até a ilegalidade nos jovens. O fato de que muita gente mais idosa também está adotando as roupas e os hábitos dos moços talvez indique uma tentativa inconsciente de estabelecer contato, em si mesmos, com um potencial heróico não realizado.


Às vezes, essa tentativa inconsciente de estabelecer contato com o potencial heróico interior não realizado pode estourar de maneiras estranhas e até violentas. Exemplo notório em anos recentes foi a tentativa de uma mulher jovem, chamada Squeaky Fromme, de assassinar o Presidente Ford. Não contente de desempenhar o papel arquetípico do Bufão, um errante sem pudor conforme as regras e costumes estabelecidos, Squeaky propôs-se a eliminar completamente o Estabelecimento. "Não deu certo", relatou. Conseguiu, entretanto, certa imortalidade quando apareceu sua fotografia completa, com o barrete vermelho do bobo, na capa da revista Newsweek do dia 15 de setembro de 1975 (Fig. 10).

Em nossa jornada para a individuação, o Louco arquetípico demonstra com freqüência não só a resistência mas também a iniciativa inerentes à sua natureza, influindo em nossa vida de maneira menos drástica e mais criativa. A sua curiosidade impulsiva impele-nos para sonhos impossíveis, ao passo que sua natureza folgazã tenta atrair-nos de volta ao laissez-faire dos dias da infância. Sem ele nunca empreenderíamos a tarefa do autoconhecimento; mas com ele estamos sempre tentados a vagabundear à beira da estrada. Visto que ele é parte de nós mesmos destacada da consciência do ego, pode pregar peças à nossa mente pensante; as escorregadelas embaraçosas da língua e os lapsos convenientes de memória são as menores dentre elas. Às vezes, suas brincadeiras, ainda mais pesadas, nos atraem para situações em que o ego nunca se arriscaria a aventurar-se.

Parece evidente que o Louco, Herói-Embusteiro, prega peças boas ou más, dependendo do nosso ponto de vista. Para citar Marie-Louise von Franz, uma figura dessas, "metade diabo e metade salvador... ou é destruída, ou reformada ou transformada no fim da história".[Marie-Louise von Franz, An Introduction to the Psychology of Fairy Tales, Nova Iorque,Spring Publications, 1970, Cap. 19, pág. 10]. Nos capítulos seguintes observaremos o Louco e/ou herói do Taro nas vinte e uma fases ao longo do caminho da sua transformação. Sem dúvida alguma muitos milagres terão de acontecer antes que o louco conglomerado de energias simbolizado pelo saracoteante Bufão da carta número zero emerja na carta número vinte e dois como o Mundo, sereno dançarino que se move ao ritmo das harmonias das esferas.

No baralho suíço, O Louco é chamado Le Mat, o que significa literalmente "o obtuso". Muitas vezes, os bobos da corte eram, na verdade, retardados mentais. Posto que obtusos em questões de intelecto, acreditava-se que tivessem um relacionamento especial com o espírito.

 Chamando esse bobo de "figura religiosa arquetípica", von Franz liga-o à função inferior, termo de Jung para um aspecto pouco desenvolvido da psique. Em suas Lectures on Jung's Typology, [James Hillman e Marie-Louise von Franz, Lectures on Jungs Typology y Nova Iorque, Spring Publications, 1971, Parte 1, págs. 6, 7]. equipara o Louco a "uma parte da personalidade, ou mesmo da humanidade, que ficou para trás e, por conseguinte, ainda tem a inteireza da natureza".

Considerados afetuosamente como os amigos de Deus, ou les amis de Dieu, tais loucos eram tratados e queridos pela sociedade. O costume subsiste em forma vestigial entre pessoas do campo cujo "idiota da aldeia" é sustentado e protegido pela cidade inteira. Entretanto, nas comunidades chamadas civilizadas, já não se toleram tais aberrações da norma, de modo que essas pessoas são trancafiadas em instituições.

Se o Louco usasse o nome italiano, Il Mano (O Louco), seria, sem dúvida, posto de lado pela nossa sociedade, pois a insanidade é uma condição do espírito humano muito temida hoje em dia. Aqui também o Estabelecimento se tornou cada vez mais intolerante com o comportamento que aberra do que quer que se tenha decidido chamar normal. É indubitável que o aumento alarmante do uso de drogas pode imputar-se, em parte, ao aumento da rigidez da geração anterior. Segundo parece, só as drogas poderiam fazer adormecer suficientemente a consciência para que se pudessem quebrar as barreiras artificiais erguidas entre os dois mundos. Agora muitos que recorreram às drogas para sair à força de uma prisão cultural demasiado rígida se vêem encalhados do outro lado, incapazes de encontrar abrigo de alguma espécie nos ventos caóticos da psicose. A doença mental está aumentando num ritmo alarmante. Ironicamente, mas não inesperadamente, a coisa que mais temíamos desceu sobre nós.

O meu Louco interior, por exemplo, levou-me à análise junguiana há mais de vinte anos, duas vezes por semana, por uma hora - só para ver como é!". Em certo sentido, ainda estou lá, pois a jornada nunca tem fim.
Paradoxalmente, o caminho para a verdadeira sanidade passa através da infantilidade e da loucura. Em certas cerimônias primitivas, o médico e o paciente "agem como loucos" a fim de converter a ordem má prevalecente no seu oposto. No Rei Lear, a figura central, desamparada como uma criança, é obrigada a peregrinar pela charneca, exposta a tempestades furiosas dentro e fora, antes de chegar a uma nova e real claridade de alma. 

É característico da introvisão de Shakespeare que Edgar, disfarçado de bufão, conduza Lear à sanidade. O Louco pode bancar o diabo, atraindo-nos para a loucura; mas também pode ajudar-nos a encontrar a salvação.
Comentando o aspecto de Salvador tanto da criança quanto do louco, McGlashan diz o seguinte: O homem precisa voltar às suas origens, pessoais e raciais, e aprender de novo as verdades da imaginação. E nessa tarefa seus estranhos instrutores são a criança, que mal entrou no mundo racional do tempo e do espaço, e o louco, que apenas escapou dele. Pois somente esses dois estão, até certo ponto, libertados da pressão desapiedada dos acontecimentos diários, o impacto incessante dos sentidos externos, que oprimem o resto da humanidade. Esse curioso par viaja ligeiro e empreende jornadas distantes e solitárias, às vezes trazendo, ao voltar, um ramo luzente da Floresta de Ouro pela qual vagueou.[McGlashan, op. cit., pág. 39].
O Louco como Salvador em potencial é encantadoramente retratado num Taro desenhado na primeira década deste século sob a direção de A. E. Waite. Esse delicioso jovem pajem, com suas vestes floridas e sua rosa, parece quase andrógino, combinando qualidades masculinas e femininas numa mistura feliz. Em muitas culturas primitivas se acreditava que os deuses e os primeiros humanos fossem bissexuais, simbolizando assim o estado primordial de inteireza que existia antes da separação dos opostos - céu e terra, macho e fêmea.

A roupa desse Louco, portanto, liga-o não só ao poder primitivo do Criador mas também à inocência do recém-criado. Apesar do precipício hiante à sua frente, o jovem Louco de Waite pavoneia-se ali sem cuidado. Tem a cabeça envolta em sonhos nebulosos de um mundo perfeito, livre de todo infortúnio, e seu coração anseia por amores e aventura. Parece tão ingênuo quanto Parsifal. À semelhança de Parsifal, o Grande Louco, não tem a menor noção da pergunta que deve fazer à vida, nem mesmo de que seja necessário fazer-lhe alguma pergunta; mas tem um cãozinho capaz de farejar o perigo e ajudá-lo a fugir.

Como acontece com Parsifal, a conexão do Louco com o seu lado instintivo tem o poder não só de salvá-lo, mas de salvar toda a humanidade também. Nesse sentido, Joseph Campbell tem afiançado amiúde que era precisamente a completa confiança de Parsifal na sua intuição nativa que o induzia a não dar atenção às boas maneiras convencionais e aos conselhos dos mais velhos, de modo que no fim ele fez a única pergunta simples necessária à redenção da Terra Marinha. Talvez o Louco sonhador de Waite se acabe salvando - e salvando-nos. Como o Príncipe Mishkin em O idiota de Dostoievsky, o Louco de Waite personifica o poder redentor da simplicidade acrescida da fé.

 E como todos os loucos, ele foi tocado pela mão de Deus. Deus tocou o louco de muitas maneiras. Em tempos idos, as deformidades físicas eram consideradas marca especial do Senhor; assim, anões, corcundas e coxos eram freqüentemente escolhidos para bobos da corte ou de casas reais. Às vezes, pais ambiciosos criavam tais deformidades por meio de amarrações ou outros expedientes, de modo que os filhos pudessem aspirar ao cobiçado cargo de bufão. Independentemente de terem sido esses estropiados tocados pela mão de Deus ou pelos truques desleais do homem, revelavam-se seres humanos de profundidade e sabedoria incomuns. Excluídas pelas deficiências físicas das atividades e interesses do homem comum, tais pessoas eram obrigadas, através da solidão e do sofrimento, a descobrir recursos no interior de si mesmas. 

A ironia do palhaço triste, tema freqüente nas artes, foi imortalizada na tela por Picasso e Rouault e, no palco, nomeadamente em Rigoletto e Pagliacci, se bem que talvez em parte alguma de forma tão eloqüente, em termos de dignidade humana e da capacidade que tem o espírito de transcender o sofrimento, como em Don Sebastian de Morro, de Velasquez.
O Louco, seja ele bobo da corte, embusteiro ou palhaço de circo, é sempre tocado da tristeza e da solidão de qualquer figura que se destaca do aconchegante anonimato de que desfruta o homem médio.

 Uma figura do Taro que capta essa nota solene é, significativamente, um Louco recém-saído da casca de um baralho contemporâneo chamado Taro Aquariano (Fig. 7). À diferença dos Loucos de muitos outros baralhos, apresentados movendo-se para a direita (tradicionalmente a direção da consciência), esse andarilho está virado para a esquerda (o lado sinistro, inconsciente). Todos os outros Loucos, saindo para o mundo extrovertido da ação, simbolizam a evolução da consciência através da experiência externa. O Louco Aquariano, diferente da maioria dos moços das gerações passadas, arredou-se dessa espécie de realidade para deter-se reflexivamente no limiar de outro mundo. Talvez tencione, como muitos jovens dessa idade, explorar o mundo interior dos sonhos e das visões.

De longe o mais solene de todos os Loucos, esse sujeito é o único que parece estar olhando para onde vai. Dá a impressão de estar dirigindo o olhar para algum alvo distante. Embora retratado como um jovem, não há nele nada da alegria ou da vivacidade temerárias da juventude. É como se estivesse enveredando conscientemente pelo caminho da autocompreensão com uma dedicação e um propósito que, de ordinário, só se adquirem na segunda metade da vida. Dir-se-ia que fugisse da vida antes de tê-la vivido. Pode ser que entenda que o nosso mundo e os seus valores não lhe oferecem a oportunidade de autocompreensão. Idealmente, voltará da sua jornada interior inspirado para criar um mundo novo e provocante, mais digno dos seus esforços.

O Louco Aquariano espelha a seriedade e a tristeza dos moços de hoje, cujo destino foi nascer num mundo diferente, em todos os sentidos, do mundo que seus pais conheceram. Como assinalou muitas vezes Margaret Mead, quem quer que tenha nascido depois da Segunda Guerra Mundial está ingressando num clima científico e cultural desconhecido de seus pais e para eles sempre incognoscível. O problema não consiste tão-somente no hiato entre as gerações, mas num abismo cultural tão grande que é quase como se os jovens de hoje tivessem todos desembarcado num novo planeta, assim física como psicologicamente.

Não há dúvida de que este é precisamente o abismo que o jovem pajem de Waite não viu chegar. Que contraste entre o Louco da virada do século e o Louco Aquariano contemporâneo! Quando olhamos para o novo viandante sentimo-nos confiantes em que esse moço também tem a capacidade de tornar-se o Herói-Salvador que mata o dragão e leva-nos a todos para um novo reino. Primeiro, contudo, parece que todos nós, jovens e velhos, precisamos tirar a cabeça de entre as nuvens e enfrentar juntos o abismo da realidade. Talvez nos seja até preciso cair no abismo para encontrar um solo comum, no qual possamos construir um novo mundo.

No Taro de Marselha, o Louco tem o número zero, fato digno de atenção, pois o número sob o qual "nasce" uma carta projeta luz sobre o seu caráter e o seu destino. Como as estrelas, os números brilham com uma eterna realidade, que transcende a língua e a geografia. Deu-se-lhes o nome de "ossos do universo" porque são arquétipos que simbolizam as inter-relações de todas as coisas, mortais e imortais. As palavras expressam as idéias do homem; os números expressam as realidades de Deus.

O conceito de zero, desconhecido do mundo antigo, só apareceu na Europa a partir do século XII. O descobrimento desse "nada" ampliou de maneira importante a capacidade de pensar do homem. Praticamente, criou o sistema decimal e, filosoficamente, concretizou o assombroso paradoxo de que o "nada" é realmente alguma coisa, ocupa espaço e contém poder. Afigura-se apropriado que o zero tenha sido atribuído ao Louco. No velho jogo italiano de Tarocchi, o Louco, fiel à forma, não tem valor por si mesmo, mas aumenta o de qualquer carta com que esteja combinado. Como o zero vazio e imprestável, a magia do Louco pode transformar o um em um milhão.

O poder do zero inerme à sua forma circular. Para experimentar as qualidades essenciais dessa forma, ponha-se em contraste a impressão de um círculo e a de um quadrado. Imagine que você queira desenhar um círculo perfeito. Em primeiro lugar, colocará uma perna do compasso no lugar que há de ser o centro do círculo. Agora está pronto para traçar-lhe a circunferência, pois enquanto não lhe tiver localizado com precisão o centro, não poderá começar a traçá-lo. Aí não cabe a história de saber quem nasceu primeiro, se o ovo, se a galinha: o centro vem primeiro e é, de fato, central para todo o conceito do "círculo", fato esse que não se aplica a nenhuma outra figura geométrica.

Um círculo com um ponto no centro é o sinal universal para indicar o Sol, fonte de todo o calor, de toda a luz, de toda a força. Esse hieróglifo também representa o Ovo do Mundo, de cujo centro fértil proveio, e continua a provir, toda a criação. O Louco, cuja roupa colorida tem sido chamada a vestimenta sempre móvel do centro imóvel, como o seu número zero, não expressa nada e contém tudo.

Tente desenhar um círculo à mão livre no ar. O movimento é tão natural e fácil que, tendo-o começado, é quase impossível parar. Podemos sentir como o círculo veio a simbolizar a inteireza natural, o movimento perpétuo e a infinidade. Já não se dá o mesmo, naturalmente, com o quadrado. Para desenhar o retângulo mais primitivo são necessários quatro movimentos separados, e para desenhar um quadrado perfeito fazem-se mister medições precisas. Não é coisa que se faça com uma torção do pulso. Em parte alguma da natureza se encontra o quadrado perfeito; este é, definitivamente uma criação do homem.

O homem está intimamente ligado ao movimento circular em cada segundo de sua vida através do padrão da sua respiração e do fluir da sua corrente sangüínea. A jornada da nossa vida também é circular, visto que partimos da intuição inconsciente da infância, passamos pelo conhecimento e voltamos à percepção intuitiva, que é sabedoria da velhice. O círculo tem propriedades únicas; indivisível e indestrutível, é, portanto, imortal. O mesmo já não se dá com o quadrado. Tente fazer este experimento. 

Recorte um círculo de papel ou de papelão, corte-o em duas metades e depois pergunte a alguém o que são as duas peças. O mais provável é que a pessoa responda que são "dois semicírculos" ou "um círculo cortado em dois". Depois apresente um quadrado cortado em metades, quer diagonal quer verticalmente, perguntando novamente o que são aquelas partes. 

Desta feita o seu interlocutor responderá provavelmente que se trata de "dois triângulos" ou "dois retângulos", conforme o caso. Seja como for, o quadrado original se perde, ao passo que o círculo mantém sua identidade do começo ao fim. O zero também é similarmente indestrutível, pois não pode ser modificado por adição, subtração, multiplicação ou divisão.

O círculo reflete a forma dos eternos planetas e do grande domo do céu, liando-os ao globo terrestre e recordando-nos que também flutuamos no espaço celeste. Se estivéssemos num aposento circular, cuja parede externa fosse inteiramente construída de vidro, poderíamos abraçar o universo. Mas preferimos, ao contrário, viver em caixas quadradas cujas janelas exibem paisagens pré-escolhidas para a nossa inspeção, encortinadas para excluir a natureza. Preferimos repartir o mundo de acordo com o padrão do homem a expor-nos ao fluxo livre de toda a natureza, que é a habitação do louco despadronizado.

De tudo o que foi dito até agora é fácil ver que o emblema do Louco se tornou o símbolo da divindade não manifestada, desde o caos ou vazio primevo, do qual surgiram o cosmo e todas as suas criaturas. Tem sido ligado ao cabalístico En Soph, ou Luz Ilimitada, princípio ativo da existência antes da sua manifestação na matéria - o nada do qual provêm todas as coisas. Como tal é também a prima matéria alquímica, ou substrato do ser, "a coisa com que todos começamos".

O círculo também simboliza o Jardim do Éden, o paraíso, o bem-aventurado estado de inconsciência e inocência que a espécie humana experimentou antes de cair nas duras realidades da consciência. Representa o ventre feliz em que todos estivemos encerradas "uma vez" quando crianças, antes que o conhecimento dos opostos proibidos resvalasse para o nosso jardim. Muitos quadros mostram o Jardim do Éden como um círculo, notadamente a Expulsão de Paolo, no centro do qual há um belo mundo verde redondo cercado por um arco-íris.

 É o mundo do Louco - e suas cores -a habitação de que ele sai para visitar-nos de quando em quando, arrastando nuvens de glória eterna. No céu acima do Éden, Paolo nos mostra o Senhor apontando um dedo severo para Adão e Eva, que acaba de expulsar do jardim e condenar a errarem sem pátria para todo o sempre. Podemos identificar-nos com os dois. Como todos anelamos voltar para casa - arrastar-nos confortavelmente de novo para o ventre do tempo! A saudade que sentimos da infância e do lugar onde nascemos reflete esse grande anseio de nos vermos encerrados mais uma vez no Círculo Perfeito.

Em muitos quadros, um círculo nos céus representa um sítio sagrado, um terreno, onde aparecem milagrosamente poderes celestiais — em que o divino "irrompe" na percepção humana. Em nosso Taro o mesmo desenho é usado em várias cartas, como será discutido em capítulos subseqüentes. Neste sentido é interessante que a palavra "cifra" esteja ligada ao Sefiró hebreu, os dez pontos da Árvore cabalística da Vida onde o poder de Deus se manifestou.
Em seu Deus Criando o Universo, William Blake utilizou esse expediente eficazmente para retratar o que denominou "a habitação secreta da Divindade sempre invisível" (Fig. 11).

 Aqui uma Divindade barbuda, aliás muito visível, estende um braço comprido a partir de um círculo sagrado onde, com o compasso na mão, está prestes a criar o nosso mundo microcósmico à imagem e semelhança do Ser Perfeito acima. Visto que a Divindade não pode criar o nosso mundo sem primeiro fixar-lhe o centro, o quadro de Blake nos tranqüiliza no sentido de assegurar-nos que o nosso mundo também tem um núcleo central de ordem e significação no interior de suas profundezas; basta que possamos encontrar o caminho até lá.

Há mil maneiras com que o nosso mundo reflete o Grande Círculo acima. Muitos séculos e culturas criaram templos e igrejas em forma circular, dos quais Stonehenge, Hagia Sophia e o Templo de Delfos são exemplos proeminentes. A etimologia da palavra "círculo" volta a ligar-nos com muita coisa do que já foi dito. As palavras "church" (igreja) e "kirk" (igreja nacional da Escócia) estão relacionadas com círculo, e a palavra grega kirkos (falcão) foi o nome dado ao sacerdócio. Por isso podemos ver que, como viajante do espírito, o Louco conquista honestamente o seu zero e ganha também a pluma no barrete.

Acreditava-se que um círculo mágico mantinha afastados os maus espíritos e concentrava energias no interior dos seus limites. A Távola Redonda do Rei Artur tinha essa misteriosa significação e é às vezes pintada com o Santo Graal aparecendo milagrosamente no centro, para assombro dos cavaleiros sentados à sua volta. 

Qualquer mesa, relógio de parede ou zodíaco ilustra também outra característica do círculo mágico do Louco; ajunta pessoas ou idéias dentro de um relacionamento em lugar de separá-las umas das outras numa hierarquia de importância. O círculo não tem pés nem cabeça, e qualquer pessoa ou coisa na sua circunferência está eqüidistante do seu ponto central. É por isso que os diplomatas costumam sentar-se em torno de uma mesa redonda para discutir problemas internacionais.

Discos de grande interesse contemporâneo (e muito ligados ao Louco) são os discos voadores, circulozinhos que fazem pontaria ao nosso mundo vindos de mundos presumivelmente acima e além da nossa compreensão. O fato de se ver um novo e estranho "círculo celeste", ou de acreditar que se vê, tão freqüentemente nos dias de hoje, pode significar, como Jung sugeriu [C. G. Jung, Civilizatíon in Transirion, The Collected Works of C. G. Jung, Princeton, Nova Jersey, Princeton University Press, Vol. 10, § 723. Daqui para frente as Collected Works de Jung serão indicadas pelas iniciais C. W. (em Ffying Saucers: A Modern Aion)], que uma nova imagem de inteireza está em vias de irromper na consciência. 

Mas esses discos voadores sofrem o destino de todas as novas introvisões; são dispensados por "tolos" e rotulados de "nada", como acontece com o próprio Bufão. Nada é um símbolo perfeito para o estado de inteireza indivisa antes da criação das coisas. O mundo da experiência cotidiana, descrito pelos hindus como "As Dez Mil Coisas", é realmente uma ilusão criada pelo homem. Tanto psicológica quanto fisicamente criamos o mundo que vemos. Tudo nele vem do nada, quando nascemos, e voltará ao nada, quando morrermos. Fora do tempo e do espaço, esse nada é natureza pura, a essência por trás do véu.

 "Nós fazemos vasos de barro", observou Lao-tzu, "mas a verdadeira natureza deles está no vazio interior". Fazer contato de novo com o vazio natural, tornar a encher o nosso espírito com o seu inexaurível poço de silêncio, tal é o objetivo da maioria dos exercícios de meditação. Não podemos encontrar uma palavra criativa nova sem haver sondado o silêncio fundamental que existia antes da primeira Palavra da Criação.

Fig. 11 Deus Criando o Universo (O Ancião dos Dias, de William Blake. Reproduzido do original na Biblioteca e Galeria de Arte Henry E. Huntington.)
A idéia do círculo como princípio e fim da jornada é simbolicamente expressa pelo Uroboros, ou Comedor da Cauda, a mítica serpente que se cria, alimenta e transforma engolindo a própria cauda. Sua forma circular representa o estado original da natureza inconsciente, o ventre primevo antes da criação dos opostos e o estado de inteireza, a união dos opostos, desejada no fim da jornada.

De acordo com São Boaventura, "Deus é uma esfera inteligível, cujo centro está em toda a parte e cuja circunferência não está em parte alguma".[São Boaventura, ttinemrium (trad. por James), citado por Jung, Mysterium Coniunctionis, C. W. Vol. 14, 9 41].

 Segurar o Louco, mesmo dentro do amplo mundo do círculo, é impossível. Talvez possamos dizer que ele representa um fator redentor dentro de nós mesmos, que nos impele para a individuação. É essa parte nossa que, inocente mas, de certo modo, conscientemente, se vê embarcada na busca do autoconhecimento. Através dela, incidimos em experiências aparentemente insensatas que, mais tarde, reconhecemos como cruciais para o padrão da nossa vida.
Jung definiu o ego como ''o centro da consciência". O eu foi o termo que ele usou para denotar o centro de toda a psique, um centro de percepção e estabilidade ampliadas. Como o Louco do Taro nos mostrará em sua dança circular, o eu não é uma coisa que criamos, nem uma espécie de cenoura de ouro que a vida nos balança diante do nariz. O eu está lá desde o princípio. O ego, se se puder dizer, efeito - mas o eu é dado, Existe em nosso nascimento - e antes do nosso nascimento e depois da nossa morte.

 Está sempre conosco, esperando que voltemos para Casa e, no entanto, instando conosco que continuemos, pois não há como voltar. A nossa viagem, como a do Louco, é circular. Para citar Jung: O ego está para o eu como o movido está para o motor, ou como o objeto está para o sujeito. O eu, como o inconsciente, é um a priori existente, do qual evolve o ego. É, por assim dizer, uma prefiguração inconsciente do ego. Não sou eu quem me crio a mim mesmo, antes aconteço para mim mesmo. [C. G. Jung, Psychnlogy and Religion: West and East, C. W. Vol. 11, § 391].

A iridescência do Louco não pode ser apressada e espetada em palavras. Mas a citação supra parece capturar, pelo menos, algumas das suas cores dançarinas. Seja-nos permitido dizer que o Louco do Taro é o eu como prefiguração inconsciente do ego. Tenho a impressão de que até o Louco será capaz de achar isto suficientemente ambíguo! Se ele estiver rindo será para lembrar-nos de que o humor é um ingrediente importante em todas as nossas relações e um artigo necessário para qualquer viagem.

William Butler Yeats compreendeu-o. Pôs-se a campo colecionando histórias divertidas dos camponeses da Irlanda. Numa delas, denominada "A Rainha e o Louco", ficamos sabendo que o nosso Louco do Taro ainda está vivo hoje na Irlanda e continua pregando as peças costumeiras. Os que o viram dizem que usa uma barbicha em ponta e gosta de aparecer inesperadamente em lugares estranhos.

Ouvi um Hearne, feiticeiro, que mora na divisa de Clare e Galway, dizer que "em todas as casas" do País das Fadas "existe uma Rainha e um louco", e que, se você for "tocado" por qualquer um deles nunca se recobrará, embora possa recobrar-se do toque de qualquer outro habitante do lugar. Ele disse do louco que "talvez fosse o mais sábio de todos", e descreveu-o vestido como um dos "mascarados que costumavam andar por lá"... 

A esposa do velho moleiro ajuntou: "Dizem que eles (os do País das Fadas) são quase todos bons vizinhos, mas para o toque do louco não existe cura: quem quer que o receba está perdido."[W. B. Yeats, "The Queen and the Fool", Mythologies, Nova Iorque, The Macmillan Company, 1959, págs. 112, 113]. Do toque do Louco ninguém se recupera. E quem haveria de querer recuperar-se. Inspirado nos ensinamentos de Anonimo.


Eu Sou Dharma dhannyael

Nenhum comentário:

Postar um comentário